Tema 029 - NO MEIO DA ALEGRIA
BIOGRAFIA
NO MEIO DA ALEGRIA
Marta Rolim
Pedro havia lido os livros de Amyr Klink e se apaixonara pela aventura em solitário. Resolveu fazer o mesmo. Resolveu traçar seu rumo no mapa: Brasil – México. E durante dois anos fez isso, planejando cuidadosamente sua venturosa travessia, calculando as dificuldades que enfrentaria, escolhendo estratégias, munindo-se de materiais resistentes, à prova de intempéries, de ferramentas para toda sorte de imprevistos e de uma caixa de úteis remenda-tudo.

O barco era uma canoa de mar primorosa, de nome Iemanjah. Resistente como poucas e preparada para abrigar um homem com relativo conforto. Feita para virar e voltar a posição normal automaticamente. Preparada para agüentar as piores depressões. Claro, contando com um marinheiro que não errasse demasiadamente as manobras, que não expusesse a embarcação a riscos desnecessários e nem a perigos impossíveis de se livrar. Contando também com um potente motorzinho elétrico que salvaria em momentos críticos, que impulsionaria valentemente na direção certa quando preciso.

Tudo preparado, pendências resolvidas, e a despedida veio, não sem um aperto inesperado no peito. Pedro beijou carinhosamente a mulher e partiu.

Na primeira semana tudo correu às maravilhas. Nenhum imprevisto. Ocorrências registradas no diário de bordo. Distância percorrida: excelente! Mar calmo, as vezes um pouco grosso. Progresso anotado milha à milha. Pedro aproveitou para falar com a esposa (Bianca, querida Bianca!) pelo rádio. Conversou com as estrelas. Viu uma baleia, uma franca. Desfrutou da companhia dos golfinhos, e cuidou de não ignorar os tubarões que de quando em quando apareciam para roçar o casco azul de Iemanjah. Sentia-se vivo como nunca! Pensava em Amyr, o ídolo, e sentia-se como aquele que acha sua alma perdida.

Então veio a verdadeira prova dos elementos. Prova essa previsível. Qual o marinheiro que não passa por sua grande depressão, aquela que fustiga a carne como um chicote de couro, aquela que ameaça rebentar com os preparativos dos homens, como quem esbofeteia a brinquedos? Todo marinheiro passa por seu batismo no mar e não há escapatória. Pedro sabia que o mar apenas lhe mostrava uma face branda e amigável para logo revelar uma outra faceta bem diferente, que exigiria de si toda competência e coragem.

E a tormenta veio. Bianca avisou a Pedro (pelo rádio, naturalmente!) que uma tempestade muito forte se aproximava, que a coisa seria feia, que ele se preparasse bem. Pedro cuidou de amarrar bem as cordas, de firmar bem a âncora, de recolher bem as velas, de fazer uma verificação geral nos equipamentos. Enfim, revisou todos os itens, sua disposição e situação, sem erros. Não queria ser pego por um errinho bobo, destes que acabam custando muito caro, destes que podem fazer um marinheiro experiente suar frio.

A tormenta veio, mas não era tormenta. Era um pesadelo. Os ventos fortíssimos, que rasgaram num repente, começaram a jogar Iemanjah em abismos colossais que só não partiam o casco em mil pedaços porque a canoa era inacreditavelmente resistente. E dos abismos surgiam os paredões intransponíveis. Pedro começou a rezar (deixou a reza para a última hora: fervorosa). O batismo é forte demais, disse para si mesmo, num riso amargo. Então essa era a face que o mar lhe mostrava? Selvagem! O mar não tinha culpa, não tinha culpa alguma. Sempre arrastou as almas consigo sem a menor consideração. Quem tem culpa é gente, gente que se arrepende do que faz, gente tola, mas o mar não se arrepende de nada. E a ressaca na praia às vezes mostra resquícios de uma ira afogada.

Não se sabe como, porque Pedro perdeu os sentidos, mas o marinheiro atravessou o batismo incólume (a violência sem culpa do mar, a pior de todas). E quando acordou, tudo que viu foi a paz. As águas estavam mansas e cálidas, o horizonte tranqüilo... E Pedro deu um grito de alegria. Um urro de contentamento. Sobrevivera! Resolveu abrir uma garrafa daquela champanha fina, reservada para momentos muito especiais. Serviu uma taça da deliciosa bebida gaseificada, tomou um gole generoso, mais um! Derramou um tantinho para o mar, como quem oferece um gole ao santo (à Santa Iemanjá!). Resolveu chamar Bianca pelo rádio, mas não conseguiu contato. Tentaria mais tarde. Brindou à vida e à boa ventura; brindou ao esforço; à coragem e determinação que tivera, e depois escolheu uma fatia grossa de uma torta de chocolate, feita especialmente para uma comemoração só sua, muito particular e preciosa. E no meio da festa os ventos recomeçaram a soprar, tenebrosos, anunciando fúria. Tão furiosos quanto antes. De novo a canoa era esbofeteada por um gigante. E no meio da alegria Pedro soube. Não enfrentara uma tempestade, tampouco um pesadelo. Enfrentava um furacão. Estivera no meio do furacão, estivera no meio da alegria. O batismo é forte demais... murmurou sem fé, olhos vidrados nos paredões e nos abismos...

Pedro acordou agoniado, com um livro de Amyr Klink sobre o peito. Ah, bendita casa sólida, bendita rotina em terra firme! E naquele fim de semana foi fazer compras no supermercado lotado e nada lhe roubou o bom humor, nem o trânsito engarrafado. Convidou todos os amigos para um farto churrasco, liberou a cerveja e o samba até altas horas. Amou Bianca como nunca. Ninguém entendeu o porque daquela alegria toda.

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