TIA
GEORGINA
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Lisa
Simons
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Minha
avó costumava festejar tudo, até eventos insólitos como aniversários de
animais de estimação, batizados de bonecas, casamento de empregados e conhecidos
de poucas posses. Ter ou não dinheiro para os gastos, era irrelevante, ia
de groselha, pão com salame, bala de mel, bolo feito sem manteiga e com
apenas dois ovos. O que importava era festejar.
Essas comemorações sem propósito, aliadas aos piqueniques familiares, foram responsáveis pelas melhores recordações de minha infância, quando ainda morava no Méier, subúrbio da antiga cidade maravilhosa, naquela época conhecida por "corte", devido ao glamour de continuar a ser, embora já não fosse mais, a capital do país. Todos sabemos o quanto importante são as festas para as crianças, qualquer que seja a sua motivação. Os adultos não devem privá-las desses encontros, para elas o que conta são as brincadeiras, a informalidade, a sujeira generalizada e permitida nessas ocasiões, que interferem de maneira positiva nas suas emoções e ficam guardadas em sua mente para o resto da vida. A constatação de que todo adulto sofre de "amnésia da infância" já fora evidenciada por Freud ao defender um tratamento mais tolerante com as crianças, sobremaneira por parte dos educadores de sua época, que tratavam os alunos na base da palmatória e muito castigo. Dizia ele que a repressão era mais devastadora que a tolerância. Há quem discorde, mas minha avó, muito embora nunca tivesse lido uma linha do pai da psicanálise, praticava, por intuição, diretrizes que ele estabelecera, no perfeito crescimento emocional de seus filhos, netos e agregados. Assim, nas comemorações por ela promovidas, a meninada podia fazer o que bem entendesse e os idosos, que de certa maneira também são como as crianças, tinham sempre um tratamento diferenciado: ocupavam as cadeiras mais confortáveis, os lugares privilegiados da sala, de forma que pudessem cantar os parabéns junto aos demais, assistir aos casais dançando e às exibições da garotada, que iam de demonstrações de força (queda de braço), às cantigas e danças da moda. Tia Georgina era a mais velha das irmãs de minha avó, ela sempre chegava no meio da festa, vestindo cinza, de braços com o marido, Seu Bernardino, um homem bem mais velho, sisudo, que se apoiava numa bengala. Uma aura de respeitabilidade cercava sua presença, todos se preocupavam em acomodá-los na melhor poltrona e vez por outra chegava minha madrinha, perguntando se desejavam mais um guaraná ou um pedaço de bolo. Os olhos de Tia Georgina eram de um azul leitoso, alheios à alegria que reinava na casa. Enquanto minha avó circulava pelos diferentes cômodos levando sanduíches e aproveitando para trocar palavras de carinho e estímulo com os convidados, sua irmã não abria a boca, limitava-se a responder com uma inclinação de cabeça o cumprimento daqueles que se aproximavam. Minha mãe contava que quando nascera o último filho do casal, Seu Bernardino levantara suspeitas sobre a paternidade do menino, não se conformava com o fato do caçula ser alvo ao extremo, possuir cabelos lisos, quase brancos de tão loiros, e olhos azuis, translúcidos como cristal, enquanto que ele, a mulher e os demais filhos possuíam pele amorenada e cabelos castanhos cacheados. Achava que por esse motivo tinha virado objeto de comentários maldosos e, desde então, Tia Georgina submetera-se a um mutismo voluntário, incapaz de se defender da calúnia e da rejeição que o marido lhe impunha, entre quatro paredes. Um dia chegou a notícia: "Seu Bernardino havia falecido!". Meus pais se vestiram de preto e fomos ao velório, que como as festas, também fora organizado na casa de minha avó.Tia Georgina ocupava a poltrona de sempre, usava um véu negro, passava entre os dedos as contas de um rosário, mas não conseguia demonstrar tristeza pela perda do marido. Sua postura indiferente causou constrangimento aos mais chegados. Ela não derramara uma lágrima sequer, comentavam os mais venenosos. Eu, embora ainda criança, percebera um brilho diferente nos seus olhos claros, coisa que nunca havia visto antes. Se não fosse a ocasião eu podia jurar que ela disfarçava um certo euforismo, muito embora não esboçasse um sorriso e não dissesse uma palavra, aliás como sempre. Um ano depois, expirado o luto, vovó retornou ao que ela mais apreciava, promover os encontros da família, animados ao som de Luiz Gonzaga, Gregório Barros e Gardel, seus prediletos. Tia Georgina, como sempre apareceu no meio da festa, vinha segurando o braço do filho caçula e, abandonado o velho "tailleur" cinza, trajava um salmão, de tafetá, sapatos e bolsa revestidos do mesmo tecido e, no pescoço, um fio de pérolas, parecia outra pessoa. A festinha já rolava há algum tempo. A garotada depois de dançar muito twist e rock'n'roll se debruçava, exausta, nas redes e cadeiras do alpendre. Os adultos, suados, após exibirem suas piruetas em tangos e boleros, espichavam os braços atrás da cerveja gelada que vovó servia. Era a hora do bate-papo. Tia Georgina, que antes nunca abrira a boca nas rodas que se formavam, nesse dia, entretanto, se levantou, cabeça erguida, braços abertos como num bailado e, surpreendendo a parentada, recitou "O último fantasma" de Castro Alves e, enquanto todos ainda se refaziam da surpresa daquele gesto impensável, em se tratando de Tia Georgina, ela, utilizando toda a expressão de seu corpo franzino, declamou uma série de poemas de sua autoria, que eram belos, despojados, carregados de sensualidade, fazendo enrubescer alguns dos presentes. Ela havia se libertado como se saísse de um casulo estreito, desabrochou como a flor do mandacaru: em meio à aridez, entre espinhos, mas nem por isso menos bela. Era tanta a luz que escapava de seu interior, que intimidou qualquer tentativa de calar sua voz, que diferente do que eu imaginava era forte e a dicção perfeita. O desprendimento, a emoção passada por sua atitude nunca esqueço, existe em mim muito de Tia Georgina, eu sei, apenas ainda não encontrei um canto de sala para dar meu grito. |
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