OLD
SCHOOL
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Fred
Leal
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"Bom
dia", disse o rapaz ao entrar no galpão onde o resto da banda lhe esperava.
No bolso da calça jeans, um maço de cigarros e uma gaita, que ele esperava
não ter que usar. Era seu primeiro ensaio com o conjunto que havia lhe aceitado
na semana anterior.
Na verdade, ele não sabia cantar. Viu o anúncio da banda - Old School - no mural de recados da loja de Cds que costumava freqüentar. "Testes na próxima quarta". E ele resolveu aparecer, só pra se divertir um pouco. Não que tivesse muito mais o que fazer naquele dia (ou nos outros)... Chegou, e com sua voz extremamente grave, cantou "Earth Angel". Uma fácil, na sua concepção. A concorrência não era das mais duras, além de pequena. E assim, sem mais nem menos, foi escolhido e chamado para voltar. Voltou, e foi recebido pelo baixista, um rapazinho pequeno e magricela chamado "Touro", apelido que só fazia sentido no palco. Touro anunciou a chegada de seu novo vocalista: - Qual é seu nome mesmo? - Miro... - Gente, esse é o Miro. Ele vai cantar com a gente agora. O guitarrista, de uma loirice oxigenadamente inconfundível, se aproximou, sorrindo. - Prazer, Miguel. Eu não estava no dia do teste, tive uns problemas pra resolver. - Prazer - Miro respondeu, enquanto os outros integrantes voltavam aos seus lugares. Touro novamente interveio: - Ok, Miro, vamos fazer mais uns testes com você, agora com o nosso repertório. Pelo nome da banda, acho que você tem uma idéia do que a gente costuma tocar... - Tudo bem - disse ele. E perguntou - Só queria solucionar uma curiosidade: o que aconteceu com o outro vocalista? - Exército, cara. - respondeu Miguel. - Os homens pegaram ele. - Ah, que merda. - Miro concluiu. - Mas vamos lá, vamos começar com quê? - "Getting Better". Beatles. É com ela que a gente abre os shows. "I used to get mad at my school", saca? Miro sacava. O velho truque de começar o show com uma música que fizesse o público lembrar da banda. E pensou: "Essa também é fácil... Vou enrolar enquanto der... Enquanto não tiver nada agudo demais..." Abriu um sorriso, pegou o microfone e esperou o baterista marcar o tempo. Tocaram, e a música fluiu sem grandes dificuldades. Eles não eram ruins, e nisso que Miro deve ter pensado. Afinal, eram anos gastando dinheiro com CDs e shows em barzinhos. Já se julgava um bom conhecedor, pelo menos o suficiente para confiar em sua opinião. Miro já até pensava que poderia dar certo. Que ele finalmente ia ter um motivo para largar a faculdade de Direito que tanto o incomodava. Ele não queria aquilo. "Quero ser uma estrela do rock", pensou. E isso também não era verdade, e ele sabia. Mas foi o suficiente para abrir mais um sorriso e perguntar: - E agora? - Sei lá - disse Miguel. Vamos fazer um lance mais velho. Miguel não entendia muito de música, mas tocava guitarra direitinho. Touro, que já conhecia o amigo, virou e disse ao baterista (que continuava compenetrado em suas baquetas): - Aquela do Nat. - Nat? - Perguntou Miro. Miguel sorriu e explicou: - "When I fall in Love". - Ah, tá. Mais uma música se foi, e a banda começava a se animar. Tocaram mais umas três e o baterista pediu um tempo. Miguel, Miro e Touro foram até uma mesinha encostada na parede beber água. Enquanto Humberto largava as baquetas no chão e corria pro banheiro. - Ele tem a bexiga frouxa - explicava Miguel, irônico - isso acontece umas três vezes em cada show. Mas ele nunca pára no meio da música. Já até mijou nas calças. Os dois rapazes riram, e Touro balançou a cabeça, negativamente. - Deixa o cara... - ele disse. Miguel ignorou o amigo e voltou rindo até sua guitarra. Um a um, os rapazes tomaram seus lugares e o ensaio foi chegando ao fim. Na última música ("Blue Suede Shoes"), Miro já estava mais solto, e até dançava, fazendo uma péssima imitação de Elvis. No dia seguinte, mais ensaios. E assim se passaram duas, três semanas. Até que numa tarde de quarta-feira (sempre quarta-feira), Miro chegou atrasado. Mas, eufórico, foi logo se explicando. - Foi mal, gente. É que... Um cara que eu conheci na loja... Ele quer que a gente toque no bar dele sábado. Quer ver a gente amanhã. Quer que a gente toque... - Ta, tá, peraí! - interrompeu Touro - Como assim? Que cara? Que bar? Quem disse que a gente toca em bar? - Como assim? - perguntou Miro, intrigado. - A gente não toca em bar. Quer dizer, nunca tocamos. A gente só toca em festas, das escolas, da faculdade e tal... Amador, cara. - Mas Touro - agora era Miguel que se metia na conversa - essa pode ser uma oportunidade legal... - Eu sei, eu sei... Mas vocês acham que a gente ta pronto? Que a gente tem esse profissionalismo todo? - Ah, Touro, deixa disso. Vai ser divertido. Qual é o esquema, Miro? - O cara quer ver a gente tocar amanhã. Ele disse que vem aqui. Se gostar, a gente toca no bar dele sábado. Tem uma outra banda que vai tocar depois, nós vamos abrir pra eles... Se ele gostar... - Viu, Touro? Sem responsabilidade... - disse Miguel - Vamos só abrir o show... Pra quem? - Netunos. Surf rock. Legal, bem legal a banda. Já vi um show deles antes... - Ta bom, ta bom... - disse Touro, ainda meio contrariado. - Mas hoje vamos ensaiar dobrado! E ensaiaram a tarde toda, a noite toda. Já era noite quando eles voltaram pra casa. A quinta-feira chegou, e na hora marcada apareceu o cara, que se apresentou: - Prazer, Gil Camilo. Eu tenho dois bares, o "Gel", na Lapa, e o "Camelo", no Humaitá... Tava querendo uma banda pra abrir pros Netunos no sábado, lá no "Camelo". Tem que ser estreante. Se pegar bem, vocês ficam. Gil Camilo viu o ensaio, e gostou. Só não gostou muito quando Miguel se despediu dizendo "Falô, seu Gel Camelo... Até sábado!" Mas eles iam tocar mesmo assim. O finzinho da semana manteve o mesmo ritmo intenso de ensaios dos dias anteriores. E eles estavam indo bem, sabiam que não iam fazer feio. Afinal, eram só uma bandinha de covers "das antigas", e isso eles sabiam fazer. O dia finalmente chegou. Sábado às 21:00 e eles já estavam todos no banheiro transformado em camarim do "Camelo". Vestiam seus terninhos pretos enquanto Humberto não parava de mijar. Às 22:30 foram anunciados e subiram ao palco. A platéia aplaudia. Não eram muitos, mas enchiam bem o pequeno salão. Tocaram como nunca. Miro levava as canções com a segurança de um veterano. Miguel e seus cabelos loiros encantavam as menininhas do lugar. Touro corria de um lado para o outro, criando uma divertida antítese com o som da banda. E Humberto tocava mais compenetrado que nunca, sem correr para o banheiro, deixando a música fluir de suas baquetas. No final, todos foram muito aplaudidos. A coxia era tomada por um Gil Camilo eufórico, que contava aos Netunos e a quem mais pudesse ouvir, que a banda era estreante e promissora. Carlão, vocalista da banda atração da noite, ficou sinceramente impressionado, e decidiu congratular os rapazes. As luzes já tinham se apagado, e o público voltava ao bar. Enquanto cada um recolhia seus instrumentos, Carlão se aproximava do palco, sorrindo. Quando ia cumprimentar o baterista, que já saía pela lateral, foi tomado por um odor inebriante, agressivo, que já inundava todo o palco. Humberto sorria timidamente e lhe estendia a mão, que Carlão apertou displicentemente enquanto afirmava em brados para Miguel, ao seu lado: - Caralho, que cheiro de mijo é esse?! |
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