A
PESCARIA
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Fernando
Zocca
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Pulei
o muro e furtei o alicate. Era dos grandes e estava novo. A vítima acabara
de compra-lo naqueles dias.
Meu pai ficaria contente. Teria agora com o que amassar a chumbada na rede que tecia. Ela estava enganchada na parreira de uvas brancas que nascera no fundão do nosso quintal. Quando a rede estivesse pronta iríamos até o rio pescar os peixes de cada dia. O nosso bote de alumínio estava lá no barranco sob cadeados à nossa espera. O ruim, o mal mesmo é que havia muito mosquito; pernilongo, mutuca e o tal do mosquito "porva" que depois de injetar sua saliva, no local onde picava, provocando um verdadeiro edema na epiderme, trombeteava para toda a sua turma que ali havia sangue novo, quentinho e dos bons. E depois então o sossego da pescaria se acabava. Mas tirando esses entretantos o que importava mesmo era sair da mesmice. Um dia antes de irmos para a pesca meu velho pediu-me que fosse até o galinheiro e enfiasse o dedo médio na cloaca das galinhas ali viventes. Tal procedimento tinha por fim tomar ciência da existência ou não do produto das penosas. Como não se constatou a presença de nenhum ovo, o velho mandou-me então para a rua defronte nossa casa, com a missão de coligir o esterco dos burros, cavalos e mulas. O Objetivo colimado era o de adubar nossa horta em franco processo de produção de alfaces e tomates. Quando anoiteceu naquele 24 de junho, dia de São João, saímos. A temperatura era baixíssima. Fomos a pé até a rua do Porto. Tomamos o bote gélido e descemos correnteza abaixo. O importante naquela situação era manter-se sentado eis que com o desequilíbrio o barco poderia virar e afundar. A água muitíssimo fria não seria nada confortável. Depois de quarenta e cinco minutos mais ou menos chegamos ao rancho. Era um breu só. Uma baita escuridão que me dava medo e arrepio só de recordar. Alguns vaga-lumes circulavam à nossa volta. Luzes vermelhas e brancas cintilavam lá no céu indicando o trajeto dos aviões de carreira. Meu pai, com certa dificuldade e com muito esforço abriu a porta enguiçada. O ranger dos seus ferros evocou a figura do Zé do Caixão, que tétricamente me surgiu com suas unhas enormes e curvas. O cheiro de mofo nos inundou as narinas. Meu pai espirrou e o ruído espantou alguns morcegos que dormitavam no bambuzal do fundo. Fiquei amedrontado e meu velho percebendo-se do fato logo tratou de me tranqüilizar. Pegou uma vara velha de pesca, longa e fina e passou a agitá-la no ar, tendo sua base presa entre os pés. O zunido que se ouvia causado pelo atrito do ar no vegetal foi logo entremeado por um som abafado e curto. No solo, jazia um morceguinho em estado de choque. Nos estertores da morte, meu pai me olhou e me perguntou se devia mata-lo ou não. Eu prontamente disse que o deixasse viver. Era assim que eu era. Eu vivia e deixava viver. Não era mesmo muito bom? Mas foi daí que depois de prepararmos um café bem forte e fervermos o leite daquele saquinho fraco, que as coisas ruins começaram a acontecer. Depois da meia noite ouvimos passos ao redor da casa. As folhas secas e os galhos caídos ao serem pisados estalavam e informavam a presença de um ser móvel e possivelmente maligno. Meu pai rápido tomou a peixeira e colocou-se na posição de espera. Os ruídos continuavam. Engatinhando o velhote aproximou-se da porta e abriu-a com muito cuidado. Centímetro por centímetro foi afastando-a do batente. Olhou para fora e pode ver o ser maléfico e ameaçador: era um cachorro preto e branco, de estatura mediana e com pelos longos. Pelo visto tratava-se de um bicho já entrado nos anos. Meu pai riu e me perguntou de quem poderia ser aquele ser soturno. Voltamos a nos acomodar e liguei o radiozinho a pilhas. No ar aquela música sertaneja. Um saco! Recordei-me de minha tia que tinha um amigo que gostava de comer churrasco na borda de sua piscina ouvindo música de corno e bebendo cerveja em lata. Um arrepio me percorreu o corpo e senti uma espécie de descarga motora. Não foi nada fácil adormecer. Meu pai naquela altura do campeonato já roncava estrepitosamente. Na manhã seguinte a nossa chegada, levantamos cedo e uma cerração frígida nos impedia de ver o leito do rio. Mas lá estava ele. Marrom e sujo, lento e em eterno movimento de descida. Abrigava no seu interior peixes, algas, bactérias, flora e fauna vivas e em decomposição. Ali tudo se movia no vir a ser o que não era. No radio uma notícia abalou geral. Algumas pessoas pretendiam construir uma usina termoelétrica num local acima donde estávamos. A questão era: valeria a pena carregar ainda mais as águas já sujas do rio com os resíduos da usina? Ou os empregos das fábricas que surgiriam em decorrência da energia elétrica ali produzida minimizariam tais efeitos deletérios? Eu quis acreditar que somente o tempo teria a resposta correta. E foi pensando assim que naquela mesma noite, depois de pescarmos quase uma centena de mandis, voltamos para casa onde enfrentamos os dissabores de minha mãe que tinha pela frente a missão de limpar e fritar aquele produto de nossa aventura. Mas apesar de tudo éramos alegres e felizes. Vivíamos como que se no centro estivéssemos daquela alegria toda. Quanto ao alicate que havia furtado, tive oportunidade para devolve-lo logo no dia seguinte, quando nosso vizinho veio nos visitar. Mostrei-lhe a ferramenta e lhe disse que seu irmão havia me emprestado e que eu, naquele momento a devolvia. Será que não me poderia fazer o favor de lhe entregar? Perguntei-lhe. Era claro que sim! |
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