A
REVOLTA DAS PALAVRAS
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May
Parreira e Ferreira
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Estou
tentando escrever já faz mais de duas semanas. Tentei de tudo: escrever
a lápis, com canetas coloridas, em vários tipos de papel, no computador,
de todo jeito. Percebi, depois de algum tempo sentada diante da máquina,
que um fato muito estranho acontecia. As palavras, à medida que iam surgindo
na tela, ganhavam vida própria, se soltavam e despencavam por terra.
A princípio fiquei assustada, mais do que isto, desesperada com algo tão insólito: aquelas poucas e pequenas palavras soltas pela sala. Com cuidado, juntei-as num cesto de vime usado como lixeira. Talvez não tenham gostado, pois atraíram a atenção de outras palavras que começaram a se soltar e sair voando conforme eram digitadas. Pensei em usar algum tipo de adesivo, mas palavras depois que ganham o mundo não aceitam colas, gomas ou arrependimentos. Tudo o que eu escrevia teve o mesmo fim e, por mais que eu tenha me esforçado, a página continuava branca como veio à luz. Meu escritório começou a ficar repleto de palavras, a tal ponto que precisei buscar grandes sacos de lixo para poder acondicioná-las, sem obter nenhum sucesso. Eram de todos os tipos: meias palavras, enormes, gentis, ternas, despudoradas, de alto ou baixo calão, amorosas, raivosas, agressivas. Enfim, todo aquele palavrório pulando e escapando das minhas mãos e eu sem saber o que fazer. Total desolação. Quanto mais eu pedia para que se aquietassem, mais bailavam frenéticas e misturavam-se em antônimos, sinônimos, em duplicatas soltas sem sentido, como flocos de neve em ventania. Precisava arejar. Saí, dei umas voltas pelos arredores, tomei uma dose de whisky, normalizei a respiração e voltei para aquele carnaval de palavras serpentinas resolvida a agrupá-las por temas, em pastas adequadas. Posso dizer que tive o cuidado de não deixar misturadas palavras que pouco ou nada combinassem. Enfileiradas assoviavam marchinha de coreto enquanto esperavam a vez para tomarem seus lugares dentro das pastas. Até que foi tudo bem e nos limites do possível para aquela situação. Durante um dia e uma noite ficamos, as palavras e eu, neste insano e exaustivo trabalho. Depois deste tempo, restabelecida mental e fisicamente, a próxima providência foi sentar-me diante da folha virgem e pedir com humildade às rebeldes: que saíssem devagar e ordenadamente e me ajudassem a dar origem a algum texto, por mais desconexo que fosse. Elas, sorrateiras e cínicas, foram se arranjando e começaram a escrever: "Estou tentando escrever já faz mais de duas semanas. . ." |
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