Tema 028 - MEIA PALAVRA
BIOGRAFIA
A REVOLTA DAS PALAVRAS
May Parreira e Ferreira
Estou tentando escrever já faz mais de duas semanas. Tentei de tudo: escrever a lápis, com canetas coloridas, em vários tipos de papel, no computador, de todo jeito. Percebi, depois de algum tempo sentada diante da máquina, que um fato muito estranho acontecia. As palavras, à medida que iam surgindo na tela, ganhavam vida própria, se soltavam e despencavam por terra.

A princípio fiquei assustada, mais do que isto, desesperada com algo tão insólito: aquelas poucas e pequenas palavras soltas pela sala. Com cuidado, juntei-as num cesto de vime usado como lixeira. Talvez não tenham gostado, pois atraíram a atenção de outras palavras que começaram a se soltar e sair voando conforme eram digitadas. Pensei em usar algum tipo de adesivo, mas palavras depois que ganham o mundo não aceitam colas, gomas ou arrependimentos.

Tudo o que eu escrevia teve o mesmo fim e, por mais que eu tenha me esforçado, a página continuava branca como veio à luz. Meu escritório começou a ficar repleto de palavras, a tal ponto que precisei buscar grandes sacos de lixo para poder acondicioná-las, sem obter nenhum sucesso.

Eram de todos os tipos: meias palavras, enormes, gentis, ternas, despudoradas, de alto ou baixo calão, amorosas, raivosas, agressivas. Enfim, todo aquele palavrório pulando e escapando das minhas mãos e eu sem saber o que fazer. Total desolação.

Quanto mais eu pedia para que se aquietassem, mais bailavam frenéticas e misturavam-se em antônimos, sinônimos, em duplicatas soltas sem sentido, como flocos de neve em ventania.

Precisava arejar. Saí, dei umas voltas pelos arredores, tomei uma dose de whisky, normalizei a respiração e voltei para aquele carnaval de palavras serpentinas resolvida a agrupá-las por temas, em pastas adequadas. Posso dizer que tive o cuidado de não deixar misturadas palavras que pouco ou nada combinassem. Enfileiradas assoviavam marchinha de coreto enquanto esperavam a vez para tomarem seus lugares dentro das pastas. Até que foi tudo bem e nos limites do possível para aquela situação.

Durante um dia e uma noite ficamos, as palavras e eu, neste insano e exaustivo trabalho. Depois deste tempo, restabelecida mental e fisicamente, a próxima providência foi sentar-me diante da folha virgem e pedir com humildade às rebeldes: que saíssem devagar e ordenadamente e me ajudassem a dar origem a algum texto, por mais desconexo que fosse. Elas, sorrateiras e cínicas, foram se arranjando e começaram a escrever:

"Estou tentando escrever já faz mais de duas semanas. . ."

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