MEIO
DESCONTENTE
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Lisa
Simons
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Meu
filho caçula costuma dizer brincando, que o prédio onde moramos será tombado
num futuro próximo. Ele não deixa de ter razão. Revestido de pastilhas vitrificadas
em vários tons de azul e azulejos bordados nas sacadas, o Nossa Senhora
de Boa Viagem é um edifício bizarro, com sua arquitetura incomum, formando
drapejados entre as janelas. Construído no final dos anos sessenta, ele
apresenta características dos prédios daquela época: poucos andares de forma
a não bloquear os ventos oceânicos, pilastras volumosas, em grande número,
e vários apartamentos por pavimento..
Como todo litoral das grandes cidades, Boa Viagem há muito tempo vem sofrendo especulação imobiliária. Dessa forma, demolições progressivas substituem os antigos sobrados ajardinados por espigões cada vez mais luxuosos, para a tristeza dos passantes e dos moradores das ruas adjacentes, que já não podem usufruir a paisagem. Em contrapartida, para o completo deleite da minoria de afortunados compradores dos apartamentos com vista definitiva para o mar. O fato é que depois de muita poeira, os velhos imóveis desaparecem e junto com eles uma infinidade de coqueiros, mangueiras, jambeiros, quase sempre carregados de frutos, e até imensos pinheiros de natal, típicos de clima temperado, mas que por ironia, aqui crescem com facilidade, sempre verdinhos enfeitando a fachada das residências. Os bate-estacas se sucedem às demolições e o nosso prédio, em meio ao caos, pulsa como se estivesse vivo. Vibram os copos, as bochechas e o chão debaixo de nós e, como aqui o abastecimento de água é vergonhoso e a seca, antes triste sina do sertanejo, hoje também atinge o agreste e a mata, a cada novo edifício construído, um poço artesiano é perfurado. Se fosse possível um corte transversal no bairro, vislumbraríamos um imenso formigueiro. Abro um parêntese para esclarecer que esse negócio de água, sempre foi um dos mais lucrativos no nordeste, seja "mineral" em garrafões, seja em caminhão pipa para o abastecimento de cisternas ou ainda arrancada do subsolo, de forma desordenada e inconseqüente. Esse líquido precioso há bastante tempo vem trazendo subsídios a alguns privilegiados e muitos, muitos votos nas eleições. Voltando ao meu velho prédio, apesar das agressões, ele permanece inteiro em cima desse imenso queijo suíço. Nenhuma rachadura, nenhuma viga trincada, nem mesmo um pedacinho do reboco se desprendendo. O mesmo não se pode dizer de outras obras da "moderna engenharia". No bairro vizinho, esta semana, mais um edifício, se é que se pode chamar o Ijuí de edifício, caiu como um castelo de cartas. Conclusão da perícia: usou-se meio alicerce, pouco cimento, muita areia. O chão era meio aterro, a construtora pouco séria, meio esperta, tudo na base da meia nota, meio custo e muito rolo. Qualquer um sabe que a topografia da grande Recife é peculiar: meio mar, meio rio, meio mangue. Da praia, quase sempre, o que se vê no horizonte é apenas uma fita de azul esverdeado, sumindo à medida que se afasta na direção do continente. No passado, inclusive, quando a maré subia ocupava muito do que hoje é cidade, implantada à custa de muito aterro. Por esse motivo construir aqui devia ser coisa séria, mas não o é. Assim, à semelhança de outros "edifícios" o Ijuí se desmanchou. Diante dos escombros, novos sem teto constrangidos, com lágrimas nos olhos e morrendo de pudor, por causa das câmaras de TV, constatam: meia vida perdida, um sonho destruído, todas as economias socadas no barro. Perplexos, ainda escutam do responsável pela obra meias palavras e uma ameaça velada: "Responsabilizo-me por todos os danos, mas não me denunciem!" Verdade? Sabemos que não. Neste país prevalece meia justiça para os poderosos. Semana que vem, ninguém se lembrará do fato, os vestígios da existência de moradores onde jaz o Ijuí desaparecerão aos poucos, carregados pela enxurrada do inverno. Ele não será notícia até um próximo desabamento. |
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