SEM
MEIAS PALAVRAS
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Eliana
Pace
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Não
vou esconder o sol com a peneira, nem disfarçar o quanto o fato me pegou
de surpresa. Prefiro ir direto ao assunto, sem subterfúgios, por mais que
a questão seja delicada. E não tentem, aqueles que conhecem bem os meus
princípios, colocar panos quentes no caso, fazer de conta que não sabem
de nada. Quero resolver a questão pessoalmente, sem interferências. Não
farei escândalos, prometo, não pensarei em vingança, que não é do meu feitio,
mas que tenho que tomar providências, isso não se discute.
A traição - pronto, falei o que temia - foi sendo urdida aos poucos. Quando desenhadas em uma folha branca de papel, as malditas palavras iam ganhando cor, peso, textura. E se fixavam de tal maneira que não me davam mais o direito de voltar atrás. Saiam do meu controle, ganhavam vida própria. Autônomas. Eu tentava eliminá-las com borracha branca ou vermelha, com líquidos corretivos das mais diversas marcas, com as canetas importadas que haviam me jurado serem perfeitas e nada. De tanto esfregar, rasgava o papel, era obrigada a começar a escrever em uma nova folha, mas elas continuavam lá, insistindo em me provocar. Tentei enganá-las com o computador, escrevendo e deletando, mas quando me punha a salvar o texto, vinha a surpresa. Elas ignoravam qualquer comando e decolavam como folhas ao vento, sem que eu pudesse adivinhar aonde e como pousariam. Faziam estragos, provocavam tempestades. Escreviam memorandos ranzinzas quando eu queria torná-los mais leves, respondiam não quando eu escrevia um talvez. Quantos contratempos tive que enfrentar por causa dessas rebeldias. Alguém tentou me dizer que eu era tirana com as palavras, vejam só, por pesá-las, substituí-las, selecioná-las. Outro alguém me acusou de mimá-las por que eu as acarinhava, poupava, guardava para um momento mais oportuno, mais belo, enfim. Quantas eu havia trancafiado numa gaveta para nem sentir-lhes o cheiro? Estavam se vingando, não havia mais dúvidas. Uma tarde, sem que eu tivesse esboçado um único gesto, imprimiram uma mensagem de amor na tela do computador, até então em branco. Quando tentei apagá-las, fizeram um escândalo. Pularam de um lado para o outro, formaram colunas, esconderam-se na barra de ferramentas e quando acreditei que, por fim, as havia aprisionado, elas decolaram qual avião a jato. Até hoje não sei por onde andam, se foram pedir abrigo em uma casa alheia, se procuraram se aboletar em um outro micro qualquer para surpresa de seu usuário, se pousaram em um coração ocupado sem ao menos pedir licença. É por essa razão que estou em campanha para resgatá-las, entenderam agora? É por isso que insisto. Se alguém encontrar minhas palavras por aí, mande-as de volta para casa, por favor. Prometo não castigá-las, não recebê-las de cara feita, nem mesmo ficar de mal. Só quero entender a razão de tanta rebeldia e, quem sabe, propor uma trégua. |
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