Tema 028 - MEIA PALAVRA
BIOGRAFIA
CARTA DE AMOR
Ana Peluso

Ambos eram magros. Magérrimos. Tanto ele, quanto ela. Ambos tímidos. Um desastre. Logo no primeiro encontro, um esbarrão, um arranhão. Afinal ambos precisavam se proteger do mundo e vai que “ela não gostasse dele” ou “ele não gostasse dela...” E o medo que dá? Coisa de rejeição entre magros. Mas o tapa primeiro foi dela, porém nos anos subseqüentes ela levou mais tapas do que deu. Castigo. Bem feito! Vai magoar canceriano... É isso que dá.

E ficaram num vai e vem (ele ia e ela ia atrás) por muito tempo. Até que no dia em que seria dado o desfecho final (e provavelmente feliz) da história, foi a vez dela destruí-lo, fugindo dele para sempre. Vai mexer com escorpião...

E nunca mais se viram. Mas enquanto se viram, a coisa pegou fogo, ao menos do lado dela. E, ah, que fogo. Fogo platônico. Não necessita nenhum fenômeno físico para existir, mas existe mais do que o filtro em cima da pia da cozinha. Coisas do coração, como disse um, e todos plagiaram, inclusive eu, no momento. Ela nunca soube se era recíproco, mas lembra da palavra tesão, escrita com lápis de cera em cima de suas letras de música em inglês, enquanto ele passava a mão em seu joelho de uma forma diferente. Hoje ela percebe que ele (já) tentava o tantra, obviamente, mas na época não passou de “um juntar de dedos” (todos os cincos), coloca-los em cima do joelho e ir abrindo-os, todos ao mesmo tempo, cada um para seu lado, formando um circulo e fazendo com que seu corpo fosse tomado pela eletricidade da paixão (etapa física do amor).

Também houve o dia em que ele escreveu Yesterday em letras de forma e entregou a ela, com o olhar de quem entregava uma carta de amor.

Ela não esperava. Ficou feliz, mas lembrou-se que teria ficado mais, se viesse implícito de alguma forma naquelas letras o amor que ela esperava que ele sentisse por ela.

Nada. Nem um sinal. Nem um método de adivinhação. Poderia ser caça palavras, mas a letra linear desnutria suas esperanças.

Numa outra ocasião (anterior por sinal) ela precisou implorar para que ele escrevesse Explode Coração, argumentando que amava tanto a música (o que era verdade, inclusive) que precisava dela escrita (por ele; e esse era o grande motivo do pedido. Ter algo da pessoa amada, como se fosse um amuleto.) o mais rápido possível. Ele não caprichou na letra de forma uniforme como castigo pela (quase) obrigatoriedade do ato. Fez com desprezo.

Muitas vezes ela sentiu isso ao ler essa música, transcrita por ele, sonhando que fosse uma carta, um bilhete. Algo feito especialmente para ela. Para, e por sua existência.

Um dia, ele pediu-lhe emprestado uma medalha que ela carregava no pescoço, jurando ser de ouro, como se ouro pudesse mostrar que valia a pena tal amor ser alimentado. E não passava de lata a tal medalha. Mas era medalha de santo, de lata e de boa qualidade. Só quem entendesse de jóias saberia que era de lata. Ele, por falta de sorte dela, sabia.

Quando lhe pediu a medalha de volta, ele disse que havia perdido enquanto fazia cooper no Ibirapuera. Ela acreditou, mas ficou triste. Argumentou que era de ouro. Ele disse que era lata. Mas a dor que ela sentia, era por pensar que ele dera tão pouca importância à medalhinha que era dela, e que por esse motivo havia perdido.

Um ano depois soube, por um primo dele, que a medalhinha estava guardada no criado mudo de seu amor, onde podia ser vista por quem abrisse a primeira gaveta. Sentiu-se importante. Tanto quanto no dia do aniversário da melhor amiga, quando ele pediu-lhe um pedaço de bolo. Logo ela, ter a honra de servi-lo? Sentiu-se exultante, e quando ele terminou de comer o bolo cheio de glacê, (momentos que ela praticamente filmou cada gesto dele, como uma câmera, ou uma idiota) e negou com a cabeça a pergunta se gostaria de mais um, sentiu-se a última das mulheres. Ele já não precisava dela em sua existência. Um abandono.

Por ironia, naquele dia ela teve a idéia de ligar para mãe e perguntar se poderia ficar até o final da festa, que se daria às cinco horas da manhã, após um racha, onde só os rapazes da festa participariam (as mulheres deveriam ficar, como ficavam as mulheres de antigamente, enquanto seus maridos saíam para discutir política ou cair em alguma emboscada – política também). A mãe sempre liberal (afinal a filha chorava pelos dezenove cantos da casa, 28 horas por dia por causa do moçoilo) negou o pedido. Ela nunca perdoou a mãe, mas a mãe nunca soube.

Outra ocasião, em uma festa pseudopunk, quando ele finalmente mostrou alguma chance mais verdadeira de aproximação física, ela fugiu. Temia estar sendo ridicularizada. Mas não estava. Ele não era como ela, que um dia, lá no início da história, o ridicularizou por ama-lo. Ele era normal e ela não sabia. Pensou que era como todas as pessoas que ela se relacionava.

Quando ele passou no vestibular e teve seus cabelos raspados, ela pegou os tufos negros e guardou para si, até conhecer aquele que viria ser seu marido. Misturou às madeixas seu perfume predileto, imaginando com isso, poder atraí-lo pela força da magia. Acho que isso estragou tudo, porque depois de algum tempo ela finalmente racionalizou: como poderia trazer alguém para perto, justamente com um aroma que esse alguém odeia?

E um dia tudo acabou. Com ela jogando livros em direção a ele. Mas ele tinha auto-estima e não aceitou tal ato passional. Mesmo que fosse por amor, hoje ela entende.

Penso que se amaram. Nunca souberam se eram correspondidos. O medo os separou. Ela instaurou o medo entre eles.

Viram-se mais uma vez. Dessa, ela passara no vestibular, e no olhar dele, o adeus já estava escrito há muito tempo. Apenas por ele ser ciente da incompatibilidade que comprometia tal amor.

Ela, sabedora da despedida, começando a ver toda verdade de sua existência e ciente do fim, pela demora de tudo, apenas sorriu.

Nunca mais se viram. Apenas se recordam, mas chacoalham a cabeça, jogando as lembranças para bem longe de suas existências.

Hoje certamente se entenderiam. Mas nenhum dos dois sabe disso.

E nesses anos que se conheceram, se falaram raras vezes.

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