Tema 028 - MEIA PALAVRA
BIOGRAFIA
CONVERSA FIADA
Ana Peluso

- Te dou uma moeda de dois cents pela bola de gude amarela!

- Nem pensar. Vale sete! Ta me achando com cara de idiota?

- Deixa de ser mesquinho. A bola é velha...

- É, mas é amarela!

- E daí? Só por isso?

- Ué?! Pois não é justamente por isso que você quer toma-la de mim?

- Eu não quero toma-la de você. Quero compra-la.

- Por dois cents?...

- E o que você quer que eu faça? Só tenho dois cents...

- Nem pensar... Então quero algo a mais...

- Não pedindo minha coleção de fig...

- Quero sua coleção de figurinhas de automóveis antigos!

- Ah, nem vem! Sabia que ia pedir isso. Sabia!

- Então babaus... Fica sem a bola amarela.

- E você sem a coleção de figurinhas de automóveis antigos...

- Você não ia dar mesmo...

- Você não sabe!...

- Claro que sei. Faz anos que tento trocar qualquer coisa por essa coleção. Até o sutiã da Meg eu quis te dar. E ela tinha apenas treze anos!...

- É mesmo... Eu fui um idiota. Devia ter aceito o sutiã da Meg. Só para saber se houve evolução de conteúdo!

- Não fala assim da minha irmã!

- Mas foi você quem começou...

- Ta bom. Deixa a Meg pra lá...

- Deixo, mas e a bola de gude?

- O que tem?

- Vai me vender, ou não?

- Claro que não! Por dois cents, nem morto.

- Pensando bem, porque não me vende por um abraço? Faz anos que dois cents não é mais dinheiro...

- Eu sei. Mas papai me disse que valia sete cents e por menos não vendo.

- Nem por um abraço?

- Não.

- Grande amigo...

- Eu sei... Sempre fui. Você é meu melhor amigo.

- Você também...

- Meu melhor cunhado.

- O único.

- Pai dos meus dois sobrinhos.

- E marido da sua irmã.

- E meu sócio.

- E responsável conjuntamente por nossa empresa que já foi de vento em popa.

- Mais vento que popa...

- Então! Somos cúmplices. Somos unha e carne. Afinal de contas meu sangue acabou se misturando ao seu.

- Só porque eu não quis fazer o pacto na aula de biologia...

- Bem feito! Avisei você que nosso sangue se misturaria e seríamos como irmãos... Você não acreditou...

- É, mas me lembro que o pacto era justamente para que você pudesse ser dono das minhas coisas, o que incluía minha bola de gude amarela. Uma raridade! Um verdadeiro âmbar!...

- Larga de ser besta, âmbar é fóssil.

- Nan, nan... âmbar é mosca fossilizada.

- E não é fóssil?

- Você está me enrolando...

- Eu não. Tudo o que previ, aconteceu. Sou dono de tudo o que é seu, junto com você! Casei com sua irmã, sou pai de seus sobrinhos, sou dono de sua empresa, sua guitarra é minha e meu amplificador é seu e finalmente sou amante da sua secretária!

- É. Mas a bola de gude amarela continua sendo só minha.

- Isso é apenas uma questão de tempo...

- Mais trinta? Você agüenta?

- E você acha que eu pretendo morrer justo agora, que consegui tudo o que era seu?

- Excluindo a bola de gude...

- Já falei que é uma questão de tempo...

- Pois pode morrer, porque essa você não leva.

- Pois se eu morrer sem ser dono dessa bola, você morre de remorso.

- To pagando pra ver.

- E eu to pagando pra comprar. Vende?...

- Nan, nan, ni, nan, nan!

- Três cents!

- Ué ta subindo a oferta? A última alta de índice da minha bola de gude amarela foi há quinze anos!

- Pra você ver como sou democrático! Estou dando a chance de você decidir antes de dar novos lances. O próximo só daqui há quinze anos de novo e até lá você pode ter morrido e a bola será da Meg, dos meninos e minha.

- Coloquei no testamento: quero ser enterrado com ela.

- Eu não acredito! Você é um egoísta!

- E você é um corruptor de donos de bolas de gude. Lembro bem como conseguiu aquela vermelha...

- Parece um rubi, não parece?

- Parece. Parece um rubi. Tanto quanto eu pareço um rubi. Veja como estou vermelho. Estou parecendo um rubi!...

- Você está no sol há mais de duas horas se queria estar como? Azul?

- Não, verde. Olha escuta aqui, desiste da minha bola de gude amarela e vai ler Harry Porter.

- Você ta zombando de mim. Só porque não leio essa droga que você lê.

- Você chama Proust de droga?

- Ué, o cara me alucina e o que me alucina só tem um nome...

- Você não tem jeito...

- Mas você me adora!

- Eu sei...

- Então me vende a bola?!...

- Nem pensar.

- Dá?

- Não.

- Doa?

- Não.

- Empresta?

- Tsk, tsk...

- Deixa eu tocar nela, ao menos.

- Não posso.

- Porque? Tem medo que eu a corrompa com minhas mãos imundas de capitalista ocidental, farsante, que não acredita no sistema, mas finge acreditar?

- Não. Não tenho medo da sua corrupção, nem da sua índole ou mesmo das suas digitais. É que a bola não está comigo hoje...

- Como assim “não está com você, hoje”?

- Eu aluguei pro Rubens. Cinquentinha a hora! Só vai devolver na segunda-feira.

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