SÍSIFO
DOMÉSTICO
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Ivan
de Almeida
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Limpeza, consertos, arrumações. Há aqui em casa uma lista imensa, tão grande que somente escrevê-la já é trabalho para um dia. Mesmo que periodicamente me tome de boas intenções e resolva terminar de pintar a janela da sala - pintura interrompida há três anos-, sucumbo à preguiça quando lembro das tarefas que a essa deverão se seguir, e que são tão importantes quanto. As lâmpadas da iluminação indireta, por exemplo, há dois anos desativadas, mas para as quais tenho, desde então, comprado os materiais necessários ao conserto. Ou os fios das caixas de som, até hoje serpenteando por detrás das poltronas, quando dispõem de um duto sob o piso, caprichosamente colocado na reforma do apartamento. Isso só na sala, pois cada cômodo exige providências superiores à minha força de vontade. Esse o maior obstáculo, porque saber fazer, eu sei. Meu pai, homem prático, treinou-me durante a adolescência em consertar ferros de passar roupa, abajures, colocar cortinas nos trilhos (aliás, depois de alguns anos coloquei finalmente a do meu quarto!), trocar carrapetas de torneiras, instalar luminárias e consertá-las, enfim, em toda a sorte de saberes necessários para que uma casa funcione a contento. Não recusei esses ensinamentos. De início apenas o ajudava, depois fazia as tarefas sob sua supervisão, depois, porém, tornei-me tão melhor do que ele que pedia para não me atrapalhar falando, exímio consertador que me tornara. A isso se aliou a formação tecnológica da primeira profissão, de modo que, além de saber fazer, compreendo perfeitamente os princípios da física envolvidos. A prova é o aquecedor a gás. Ontem desobstrui os queimadores entupidos, restabelecendo seu funcionamento pleno, tarefa algo sofisticada para o comum dos mortais (mas motivada pelo horror que tenho a banho frio). O fato é que me falta disciplina para botar tudo isso em prática. Quando adolescente, apesar de tão contemplativo quanto hoje em dia, recebia as ordens paternas e elas me obrigavam a largar a leitura ou a divagação para empregar-me nessas tarefas. Lembro-me de algumas manhãs de domingo, quando meu pai resolvia trocar de lugar todos os móveis da sala, arrumá-los em outras posições, e como isso era penoso. Ele não tinha sequer um plano. Ia experimentando: Agora o sofá ali! Não, não, leve essa ponta até o fim da sala para podermos girá-lo. E eu, desolado, o ajudando nessas mudanças que muitas vezes pioravam a arrumação. Em outras ocasiões trocávamos os quartos. Meus irmãos iam para o meu quarto, eu para um outro, e assim por diante, e nós empurrando os móveis, carregando o conteúdo dos armários, adaptando as tomadas ou pregando fios no rodapé para ligar um novo telefone ou a televisão à antena. Por isso, por saber como se faz, não me parece correto chamar alguém e pagar-lhe. São tarefas tão fáceis e que seguramente eu faço melhor. Fico em um limbo no qual toda a minha preguiça e toda a minha capacidade de procrastinar aparecem em relevo. As coisas permanecem deficientes; a pia do meu banheiro só com a torneira quente -pois tive de fechar o registro para que a fria parasse de pingar-, e me faltando iniciativa para uma banal troca do tubo flexível. E o meu escritório? Ali a zona impera, pois proibi a empregada, com medo dela misturar a bagunça de papéis de tal forma que eu não tivesse mais referências para achar algum importante, de arrumá-lo. Aqui vai uma dica: Há uma geologia dos papéis. Se colocarmos sempre uns por cima dos outros, sem ceder à tentação de organizá-los nas pastas ou nos envelopes devidos (que existem, contudo), sempre poderemos localizá-los usando métodos da geologia e da arqueologia, isto é: as camadas de papéis correspondem às épocas em que os manipulamos pela última vez. O computador, porém, está perfeitamente organizado. Tenho diretórios para tudo, cada arquivo está em seu diretório, e as versões de cada um nomeadas como LavouTaNovo003.doc, ou coisa assim. Presentes na tela apenas os ícones dos programas que realmente uso. Parece que quanto mais afastado da realidade física, mais fácil fica manter a organização. O monitor, porém, está sujo. A impressora idem. A empregada não os pode limpar, e eu não o faço. Quando comprei o atual computador, transferi o antigo para meu filho, e, tendo de desmontá-lo e de desfazer todas as ligações, aproveitei e limpei-o. Ouvi da minha mulher: Olha; parece novo! |
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