EVITERNOS
|
|
Marcelo
C
|
|
- Parla! - ordenou Michelangelo, sem resposta. Mas quem pode afirmar com convicção que as estátuas não nos ouvem? Pois foi isso que vi durante toda a minha juventude, em um mundo de fé quase bruta. Fui fiel espectador, porém jamais adepto do catolicismo durante os 18 anos iniciais desta minha vida. Toda aquela ortodoxia religiosa dos meus pais não cativou-me, e mesmo ante uma fé voraz de ambos, que freqüentavam eventos paroquianos com dedicação irrepreensível, tive a liberdade de optar pelo ateísmo, descartando améns e quebrando absolutismos divinais. Eu não saberia explicar exatamente o porquê daquela minha autonomia que criei e concretizei através dos anos. Quando criança, eu acompanhava meus pais às tradicionais missas dominicais, como de praxe todos meus amigos faziam. Mas sempre tive certas hesitações que acabaram tomando dimensões mais circunspectas no meu pensamento. Assim, comecei a observar, numa adolescência não longínqua, a religião com olhos suspeitos. Minha casa seria, não fosse uma série de ornatos cristãos, imagens e velas, uma típica moradia daquele bairro do qual fazíamos parte. Meu quarto parecia perdido em meio ao ar sacro que dominava o ambiente, aos altares erguidos e "cultivados" com devoção em quase todos os cômodos. Aos dez anos, tratei de tirar, ou pelo menos diminuir o número de pequenos ícones santos e mensagens bíblicas expostos sobre o criado-mudo ao lado da minha cama. Entretanto, apesar daquela minha posição, eu sempre participava de reuniões de oração quando algum de nossos vizinhos adoecia, mesmo depois da minha adolescência. Era simples pôr a caridade acima da fé e fazer parte daquilo. Não considerava-me falso, apenas sentia que estava integrado à uma espécie de pacto, de uma comunhão positiva em prol de um amigo. Quando dávamos as mãos em volta do adoentado, uma veemente reza começava. Eu fechava os olhos, cabisbaixo, e apenas imaginava que a doença ausentar-se-ia dali em pouco tempo - uma fé individual que gostaria de coletivizar, mas que o dogmatismo religioso impedia-me de faze-lo. Eu acreditava que uma solicitude pessoal diretamente dirigida a alguém daquela forma era mais eficaz do que litanias, palavras tão-somente repetidas. Numa sexta-feira chuvosa, aos onze anos, vi Antônio, meu mais estimado amigo até então, ser vitimado por uma pneumonia arrebatadora e mortal. Morreu na manhã daquele dia, sendo velado durante a madrugada de sábado. Cristo, o senhor dos céus, carregou-o, orientado por seres alados e encoberto de flores e graças, aos umbrais do paraíso. Isso é o que vociferava Dona Isabel, a mãe, aflita e aos prantos. Chorando copiosa, porém levemente, eu sabia que aquele corpo inerte e sutil envolto naquela mortalha não fazia parte do que fora Antônio. Mas não acreditava, também, que uma alma tivesse desagregado-se do cadáver. Ao voltar à minha casa, revi atenciosamente algumas fotos do saudoso amigo e, decisivamente, acreditei em sua extinção completa. Esse foi o fato crucial que fechou um prematuro ciclo filosófico despontado em mim. A partir dali, fiz-me ateu. Minha situação quanto a meu destino poderia ser, assim imagino, de duas maneiras: por ser filho único, meus pais educar-me-iam fortemente para que eu tornasse-me como eles, ou abririam espaço ao meu próprio discernimento. Notando que eu estaria mais satisfeito com a segunda escolha, ofereceram-me a liberdade. Todavia, mesmo descrente, todo aquele exército sagrado a minha volta e toda aquela atmosfera cristã assustavam-me. Eu sentia-me mal vendo meus pais orando incessantemente diante das imagens que reinavam sobre o altar da sala, logo na entrada da casa. Até ciúmes senti daquelas esculturas, que, quando eu afrontava, o fazia com certo desprezo. Meu ateísmo foi testado durante muito tempo, em diversas ocasiões. Desentendimentos em casa, com amigos e até a morte de um amicíssimo primo apenas três meses após o desaparecimento de Antônio. Com equilíbrio, apesar dos dissentimentos. Com lucidez, apesar das mágoas. E então... Faces celestiais. Longos e castanhos cabelos, olhos glaucos, quase translúcidos, e uma pele que justificava o próprio nome: alva como as singelezas transcendentes de Cruz e Sousa. Conhecemo-nos no colegial. Ambos com quinze anos. Foi como um encontro planejado: em duas semanas estávamos atados como antigos enamorados. Alva vinha de família grande. Tinha quatro irmãos (três mulheres, com ela, e dois homens). Seus pais eram simpáticos, dóceis. Todos católicos não-praticantes. Na casa da família havia apenas uma Bíblia aberta sobre um pequeno tripé de madeira exposto ao canto da ínfima sala. Nada que recordasse o tempo em que minha casa transparecia... Nossas famílias davam-se bem, muito bem. Meu relacionamento com Alva corria através dos meses... anos... harmoniosamente. Uma união duradoura, eu imaginava, convencido. Meus estudos seguiam o mesmo caminho. Aos dezesseis anos, consegui meu primeiro emprego, numa oficina mecânica do bairro. Salário escasso, mas perspectivas crescentes. Em verdade, meu intento era a carreira militar. Minha vida era tranqüila. Minhas conquistas vinham aos poucos. Eu sobrelevava tudo o que de mal surgia. Tudo parecia uma história onírica; o mundo fora criado para mim, eu pensava. As auroras eram-me estimulantes; sentia-me um privilegiado. Enquanto o mundo oscilava, enquanto estorvos assolavam casas de alguns amigos, eu sentia-me longânime, distante de sofrimentos. Quase um mimo cotidiano pela falta de dores. Religião? Não sabia mais... Apesar da fé irrefreável dos meus pais, eu já havia esquecido-me de reuniões litúrgicas, do cristianismo; tudo aquilo era vago demais para uma vida que transbordava contentamento. Deus era um símbolo inventado para servir como eixo de vidas parcas; alguém como eu dispensava-O, pois minha fé brotava e se encaminhava a mim mesmo. Nada mais deixava-me triste, nada representava indício de infelicidade. A vida era diáfana como os meios-dias e livre como os artistas célicos que por eles dançam. Criei um escudo íntimo que defendia-me bravamente; a harmonia deu-me segurança. Alva e eu pretendíamos noivar dali a poucos anos. Nada poderia ameaçar-nos, nada poderia quebrar a durabilidade daquele amor. Nosso destino era certo, pensávamos. Todos os meus amigos viam com uma inócua inveja o modo como minha vida transcorria. "Dedicação"; era o que eu dizia a alguns que ocasionalmente questionavam-me a respeito da continuidade salutar que desenvolvi. Sorrisos; eu estava condenado perpetuamente à beatitude! Meus pais viam-me orgulhosamente. Êxitos nos estudos e estabilidade no trabalho deixavam-nos satisfeitos. Algo como: "Fizemos um bom trabalho". Eu sabia disso e não pouparia esforços para conseguir mais. Com o apoio paterno, eu aguardava o momento de ingressar junto ao Exército. Mais estudos, disciplina. Assim, nada mais afligia-me. Eu vivia em função dos êxitos, da vitória. O que interviria sobre aquela perfeição? Nada abalaria minha determinação. Minha vida com Alva assemelhava-se a um romance insonhável e inquebrantável. Aquela convicção de que nosso amor seria eterno arraigava-se em mim. Eu objetivava ver Alva feliz, vermo-nos felizes, e conseguia... Uma bênção do amor. Da acepção mais fiel ao termo que, quando criança, ouvia ordinariamente. (Para mim, à época, amor eram os insulsos beijos de pais e enamorados abraçados pela rua. Ouve-se sempre falar de amor, mas poucas vezes sente-se seu teor; foi o que descobri com Alva. Da banalidade ao conhecimento. Sinto ao ver pessoas dispersas e iludidas com o que nomeiam erroneamente de amor.) Em alguns momentos eu pensava em noivar. Mas, apesar do aval das famílias - algo difícil para um casal tão novo - eu mesmo acabava anulando a pressa que, como bem diz o velho adágio, é inimiga da perfeição. Não era temor quanto à imperfeição, porém nem todo ideal amoroso pode passar sobre primordialidades. Éramos um casal essencial, mas os empecilhos de quem almeja a independência ainda faziam-se presentes. De tal modo, apenas planejávamos, para um futuro não muito distante, a oficialização. Sempre que eu e Alva saíamos da escola, rumávamos direto à sua casa. Ficávamos em seu quarto, onde trocávamos afagos e confidências. Ela sonhava, previa o que seríamos depois de alguns anos, constituídos como família. Expectava, visualizava; com os olhos erráticos, construía futuros através de pensamentos ágeis. Sim, objetivava mais do que eu, que via-me de certa forma inferiorizado por ela. Meu egoísmo fazia-me sentir o centro daquele sentimento conjugado, daquela história. Talvez isso tenha deixado-me longe do quão intensa Alva era - quiçá muito além de mim. Independente disso, não poderia existir maior júbilo... Vida. O que é vida? Há algo fora do comum além da simples existência? Simples? Há simplicidade no que permitiu-nos viver ou deixou o Universo estender-se de forma espantosamente gigantesca em meio ao nada? De qualquer maneira, não. Pugnando, damos sentido à vida. O motivo de nossas metas faz-nos entender algo. Um entendimento totalmente ínfimo, mas motivante. E isso, junto às definições divinas, basta para a maioria. Uma morte abrupta não tem sentido. Está além da casualidade, de explicações... A partir daí, prendem-nos à espiritualidade. É o suporte, o guia. Deus criou, Deus velará. Sinto isso, pois... Sábado era um dia especial. À tarde, eu estava sempre com amigos, reunidos em uma cantina. Era tradição. Conversávamos ali. Mas eu sempre saía mais cedo. No início da noite Alva esperava-me para que saíssemos. Naquele sábado... tudo corria normalmente. No entanto, antes de escurecer, eu e meus amigos fomos visitar um amigo ausente, que acabara de ganhar um filho. Pois bem. Entusiasmados com a notícia, não hesitamos em partir de imediato ao hospital congratular Ivo, o novo pai. Uma nova vida... Todo aquele clima fez-me lembrar de Alva; imaginei como seria se passássemos pelo mesmo. Decidi que, ao reencontrá-la, conversaríamos a respeito. Ficaríamos ali, sorrindo e construindo arranha-céus aprazíveis além das nuvens... Confesso que a idéia de filhos não apetecia-me até então, mas o acontecimento sensibilizou-me, mudou-me. De carona, voltei para casa. Tomei um banho e aprontei-me para pegar Alva. Nem sequer liguei afim de avisá-la o motivo do atraso. Quatro quarteirões dividiam nossas casas, e sempre procurávamos divertirmo-nos por ali mesmo. Segui, caminhando e cantarolando, ansioso por contá-la o que eu havia visto horas antes. Percebi uma movimentação incomum que intensificava-se a cada passo meu. Para um bairro tão pacato, algo sério teria acontecido. Amedrontado, acelerei a passada... Ouvi gritos e, finalmente, corri. Antes de dobrar a última esquina meu coração batia mais fortemente, e algo inefável cruzou-me o corpo. Ao ouvir um clamor de Mariana, irmã de Alva, fechei os olhos. Ao reabri-los, estavam inundados; não consegui ver com clareza o que ocorria. Aos poucos, avistei alguns carros parados e pessoas atônitas unidas em círculo. Olhavam uma vítima de atropelamento, logo notei. Perplexo e gélido, abri espaço até o centro daquele círculo. Tomado por um pânico quase involuntário, instintivo, que transformou-se em um silêncio pasmado e tétrico ao ver aquela imagem... Com os olhos semi-mortos e murmurando algo à inconformada Mariana, Alva, estendida sobre o asfalto rubro, olhou-me e esboçou um sorriso enquanto tentava um gesto dificultoso com as mãos, me chamando. Beijei-a, mesmo seus lábios tomados por sangue, assim como sua fronte, e, inarticuladamente, eu disse que tudo terminaria bem. Enquanto lentamente acariciava os dedos da irmã, Alva fitava-me, lânguida e lutando para que seu sorriso não desfizesse-se pela debilidade. Beijei-a, beijei-a... Pedi seguidas vezes para que não abandonasse-me. Ah, Deus. Sentia-me como um dos estilhaços de vidro espalhados pelo chão... inútil; sensação de imprestabilidade torturante. Percebi que Alva sussurrava algo e encostei minha cabeça junto à sua boca... - Estou parando. Estou... Minha vida... Estarei sempre viva... Você... Não é o fim... Não é, eu sinto... Amor... - suas derradeiras palavras. Ao canto de seu ouvido, eu disse que sim, que eu também estava sentindo. Quando voltei a vê-la, seus olhos estavam estáticos. Ontem Alva foi sepultada. Por falta de sentimentos ou lágrimas, não chorarei nunca mais como durante os últimos dois dias. Estou aqui, sentado no primeiro banco da igreja que costumava freqüentar com meus pais quando criança. Olho para uma suntuosa imagem de Cristo. A Ele peço que anjos confortem minha Alva, que olhem-na enquanto eu e ela estivermos separados. A Ele peço que não deixe o amor extinguir-se, assim como minha Alva sentia e como eu também agora sinto. Sob a supremacia do amor, sob acalentos fatais. |
|
Protegido
de acordo com a Lei dos Direitos Autorais - Não reproduza o texto
acima sem a expressa autorização do autor
|