O
BECO
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Luís
Augusto Marcelino
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"Já vi três ratazanas passarem por este beco, e desconfio que há muitas outras escondidas por aqui, esperando um morador depositar mais restos de comida na lixeira de ferro. Estou aqui, escondido, esperando escurecer um pouco mais. Não posso voltar pra casa. Nem correr para a casa dos amigos. Eles devem estar todos lá, fulos da vida, desejando minha morte. Ou o dinheiro que gastaram de volta. O dinheiro do aluguel do traje de gala ou do presente. Ganhei quase tudo. Uma geladeira moderníssima, linha inteligente - afirma o fabricante. Fogão, armários, a mobília quase completa. Acho que matei meu pai do coração. Minhas irmãs... bem, minhas irmãs eram contra o casamento. Devem estar consolando Bruna, minha noiva. Aliás, ex-noiva. Minhas irmãs são sacanas. Aposto que vão soltar rojões. Mas você deve estar se perguntando por que a abandonei em frente à igreja. Eu explico, calma, não é maldade. Ontem, justo ontem, recebi um telefonema. Era uma voz feminina. Muito baixa, meio rouca. "É amanhã?" Antes de responder, quis saber quem estava do outro lado da linha. "Quem está falando?" - perguntei. Desligou. Não esqueço nunca a voz de uma mulher. E aquela voz era inédita para os meus ouvidos, tinha certeza. Por que alguém me ligaria na véspera do casamento fazendo aquela pergunta? O telefone tocou de novo. Dessa vez só ouvi um suspiro. "Quem tá falando? Quem tá falando?" Outra vez a ligação foi interrompida. Assustei-me. Uma ex-namorada à beira de um ataque de nervos ao saber do enlace? Pouco provável. Tive poucas namoradas na vida. Mais precisamente duas, na adolescência. Quando conheci Bruna, em 1996, decidi que era com ela que eu queria juntar os trapos. As outras que fossem para o inferno! Era Bruna ou ninguém. Mas ainda restava a possibilidade de ser uma amante reclusa do antigo escritório onde trabalhava. Esse mundo anda meio neurótico, as pessoas são capazes de tudo. Tinha mesmo uma moça que me olhava estranho, que ficava vermelha toda vez que eu passava por perto. Um amigo me disse que ela chegou a perguntar sobre mim. Quantos anos, se era solteiro, casado, sério, rico, pobre, homossexual. Essas coisas que as moças sempre querem saber. Podia ser ela... Não a convidei para o casório. Não teria sido difícil descobrir meu telefone. Liguei para o Carlinhos, que a conhecia. - Como é mesmo o nome daquela feiosa que você disse que estava afim de mim? - Evandra. - Evandra? Contei-lhe a história dos trotes. Carlinhos sorriu. "Não, cara! Estou namorando com ela faz dois meses... só não contei pra ninguém, sabe como é, né?..." Se não era a Evandra, então quem era a autora dos dois telefonemas misteriosos? Além da dúvida senti um remorso imenso por ter ofendido a namorada de um amigo. Mas a dúvida era o pior. Fui à casa de Bruna. "Você tem inimigas?" - perguntei. Bruna se espantou. Depois respondeu que não se lembrava de ninguém que não gostasse dela, além das minhas irmãs. Aleguei que as duas adoravam-na, era apenas o jeito delas. Duro de convencê-la... Antes de voltar para casa passei no boteco do Índio. Não comentei com ninguém. Precisava relaxar. Um conhaque, por favor. Fazia frio. Tinha que pedir para meu irmão ir buscar as bebidas que encomendara para a festa. Dirigi-me às cabines telefônicas, do outro lado da avenida. Entrei na da esquerda. Cadê a droga do cartão? Maurício, meu irmão casado, não costumava atender ligação a cobrar. Muquirana, o Maurício. Vai, atende... Atende... - Fala logo que a tarifa subiu! - disse Maurício. - Não vai esquecer da bebida, Mauricinho! Vê se não esquece! - Pô, já tinha esquecido. Deixa eu pegar uma caneta pra anotar o endereço. Meu irmão vivia perdendo as coisas. Já tinha lhe dado o endereço umas três vezes. Enquanto esperava, percebi que a cabine ao lado tinha sido invadida. A avenida estava calma. Poucos carros. Pouco movimento. Meu irmão voltou à ligação e eu me distraí. Pediu para eu soletrar o nome da rua. Em seguida, antes de anotar o número e o telefone, pediu mais um momento para atender a porta. "A campainha está tocando, c...!" As vezes perco a paciência com o Maurício. - A que horas ele volta? Não podia ser... Senti uma sensação esquisita. Era como se a pessoa que estivesse na cabine vizinha fosse a misteriosa mulher dos telefonemas. Quis desligar o telefone e esperar para ver o rosto da moça. Até então só enxergara parcialmente suas pernas, de relance. Ela deixou a cabine e seguiu rumo ao morro. Ao mesmo tempo que desejava ver seu rosto sentia medo. Isso é loucura, meu Deus! Dois minutos se passaram e, enfim, encerrei a conversa com meu irmão. Decidi procurar a mulher do orelhão. Para onde ela teria seguido? Vi um garoto sentado em frente à padaria. Abordei-o. Viu uma mulher? Que mulher? Esquece. Correr pra onde? Obviamente ela tinha seguido pelo lado oposto ao da cabine onde eu estava. Mas, a alguns metros à frente, ela podia ter tomado qualquer rumo: em linha reta, à direita, à esquerda. Talvez entrado em alguma loja ou num carro qualquer. Não a encontrei naquela hora. Continuo acuado no beco. Já faz mais de duas horas que larguei a noiva e os convidados. Quando Maurício estacionava o carro em frente à escadaria eu já estava meia hora atrasado. Desci e encontrei o olhar aliviado de Bruna, que sorriu. Então eu lembrei da voz rouca e minha espinha congelou. E se a dona daquela voz fosse a mulher da minha vida? Falei disfarçadamente para Maurício que eu ia embora. E pra ele não me seguir. "Cê tá louco, cara? Não faz isso..." Corri. O quanto pude e cada vez mais depressa, entrando em ruas estranhas, não olhando para trás. Somente quando minha respiração parecia não ser mais possível foi que eu entrei neste beco úmido e fedorento. Olha lá mais uma ratazana! Essa é mais escura e mais gorda. Odeio ratos!!" |
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