Tema 026 - MORRER DE AMOR
BIOGRAFIA
MORRER DE AMOR
Gesimário

Quando eu morri de amor fazia um dia insuportavelmente lindo. Para meu desencanto, a primavera agonizava seu estertor de flores em meu quintal: bromélia, avencas, buganviles, um cardo roxo... flores para um cortejo anunciado. Morri como sempre quis: ao som das quatro estações, de Vivaldi.

Nem era dia ainda, penso eu, para aquela morte tão lindamente desejada; morri de véspera, morte súbita... corte na garganta.

Ah, esses inesperados arpejos de anjos nos anunciarão, meu amor. Nós, sob um fogo ardente onde jazem tantos outros, cavalgando uma nuvem de prenúncios.

Mas antes de morrer, nasci entre seus braços como uma escultura barroca; meus olhos sempre foram súplices de sua luz  e eu não sabia... meus lábios... ah, a minha sede eterna era de ti. Nunca mais teve a inocência de uma coisa finda a tarde esmaecida entre os meus dedos e os vãos da serra. A cesta de vime, o piquenique, as frutas, o vinho, as árvores e as sombras das árvores, como um filme de amor há muito revelado em nós.

Antes de morrer, nasci... como uma predestinação. Cumpri a premonição das videntes mais farsantes (todas leram em minhas mãos, na bola de cristal da minha pupila, o mesmo encantamento). Esse vasto destino que se fazia na insistência de um dia após o outro, quando as coisas se constróem  sem dor e sobressalto, suprindo  mínimas necessidades, esboçando o trejeito das menores alegrias.

Depois de nascido em ti, foi só me permitir refém da minha última fatalidade. Assim me deixei  envenenar, até quase à convulsão, de todos os seus gestos de ternura. 

Refiz todo o ritual da  minha morada, para fazê-la sua incondicional e permanentemente. Permiti a reprodução de sua silhueta pela luz cúmplice do abajur na tinta fresca da parede repintada de azul quase celeste. As persianas eram segredos comprometidos, passíveis que estavam de todo orvalho noturno, qualquer dança de borboleta, qualquer brisa errante. Mal sabia da exiguidade dos meus dias...

Quando deixei de recontá-los como os homens que se ocupam com a história de si próprios; quando fiz de tudo um presente voraz porque você era a minha única existência a ser consumida (eu já estava condenado), decidi que o mundo, assim como essa bolinha recortada de azul, era pequeno demais para os meus sonhos. Isso foi no derradeiro dia, quando a floração do meu ipê chegou no seu limite suportável e eu cantei todas as cantigas abandonadas na lembrança. Recuperei um chapéu de palha, presente de um antigo aniversário (aquele cuja aba é contornada por um único fio vermelho), ele sequer coube na cabeça; retoquei os cantos das paredes, uma treliça de janela, a divisória do armário, todos os lugares de provável apego à solidão. A casa inteira pronta para um grande dia...

Foi assim, o que me lembro, o dia em que morri de amor... por você.

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