A
SOBERBA
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Luís
Augusto Marcelino
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Cecília levantou bem cedo, como fazia todos os dias. Dirigiu-se ao closet, deixou escorregar sua camisola de seda branca, rendada, impecavelmente bem passada, como se não tivesse se deitado. Como se a tivesse tirado do cabide naquele momento. Escolheu cuidadosamente a roupa que iria usar. Estava meio pálida e então desistiu das roupas escuras. Escolheu um conjunto rosado. Um rosa muito discreto, de bom gosto. Por falar em bom gosto, devia todo o seu conhecimento sobre moda a Henriqueta, uma antiga vizinha. Lembrou-se de Henriqueta, que não via há anos, e do primeiro chá que tomaram juntas no terraço de sua confortável cobertura no Pacaembu. Foram apresentadas numa festa, também na cobertura, oferecida pelo marido de Cecília - Jorge Furtado, importante corretor de investimentos. Foi o responsável durante anos pelas aplicações milionárias de empresários bem sucedidos de São Paulo. Ganhou fortunas. Era um grosso, não sabia nada sobre etiqueta. Ela, embora viesse da Móoca, sempre se esforçou para ser uma grande dama. E quanto mais os negócios do marido iam de vento em popa, mais ela investia na sua formação como socialite. Conheceu todas as lojas de grife da Augusta e só comprava móveis sob encomenda, com os fabricantes de Itatiba. Aos poucos a região da Paulista e o interior de São Paulo ficaram pequenos para seu gosto. E fazia questão de, pelo menos duas vezes por ano, viajar à Europa e aos Estados Unidos. Gostava de vinhos franceses. Era um mal esse seu gosto por bebida. Talvez seu único mal. Um defeito que lhe acompanhava desde a adolescência, quando bebia o Sangue de Boi, às escondidas, de seu avô Giancarlo. O velho morrera sem saber quem tomava seu vinho. Desconfiava que fosse um dos moleques da casa. Os inúmeros moleques, irmãos e primos de Cecília. Os pobres levaram dezenas de sovas por causa dos furtos etílicos da menina. Saía para comprar vinhos de oitocentos reais. Tinha uma coleção deles. E costumava servir para as visitas os mais caros. Ainda que alguém pedisse um outro qualquer, ela mandava os empregados retirarem da adega os mais caros. Só faltava deixar a etiqueta com o preço. Mas sempre citava quanto tinha pago. O marido odiava vinho. Tomava JB, Jackie Daniels. Nada tão ostentador. Henriqueta mudou-se para o Rio em 95. Nem se despediu. E Cecília jamais a perdoou por causa disso. De certo, a amiga tinha descoberto seu caso com Alexandre - o noivo da vizinha. O importante, entretanto, era o que tinha aprendido durante os vários anos de convivência. Que se danasse, a maldita Henriqueta! Os rapazes chegariam às 9 horas. Ela não permitiu que viessem mais cedo. Queria estar bem arrumada, cheirosa, altiva. Preparou ela própria seu banho. Ainda guardava essências trazidas da sua última visita à Cidade Luz, em 1999, antes da disparada incontrolável do dólar. Sentia saudades de Paris. Das lojas exuberantes, das noites geladas, da cama estreita que dividia com Alexandre. E, claro, dos vinhos. Quando o jornal estampou o nome de Jorge na primeira página, acusando-o da quebradeira de algumas dezenas de pequenas investidoras nacionais, ela se colocou ao lado do marido pela primeira vez na vida. Aconselhou-o a ir para o Uruguai. Mas ele resistiu ainda quase um ano em terras brasileiras. Tinha esperança de se livrar dos promotores e de recuperar parte do que havia perdido. Refugiou-se em Goiânia, para ficar longe da imprensa paulista. Cecília não quis acompanhá-lo, porém. Faria tudo por ele, mas se recusava a abandonar a imensa casa de Alphaville, que compraram pouco tempo antes do escândalo. "Pra aquele fim de mundo eu não vou!" - afirmou, categórica. Se fosse Paris ou até Montevidéu, ela aceitava. Mas Goiânia? Prometeu-lhe cobertura e apoio irrestrito. Menos sair de Alphaville. No dia em que foi decretada sua prisão preventiva, Jorge sumiu do mapa. Ninguém, nem mesmo a mulher, sabia de seu paradeiro. Ela entendeu, no início. De certo seus telefones estavam grampeados e suas correspondências estavam sendo rastreadas pela Polícia Federal. Então nada mais normal do que o marido não tentar contato. Foram três meses de silêncio absoluto. Até o dia em que Jorge telefonou. - Cecília, sou eu. Olha, tenho que falar bem rápido. A coisa apertou. Tive de resgatar aquelas aplicações todas. Mas, assim que a barra aliviar, eu volto. Adeus. - Peraí! Como é que eu fico, Jorge? - Tenho de ir. Tchau! Restou-lhe, durante algum tempo, a casa de Alphaville e suas dívidas, as jóias, os objetos de arte. E seus vinhos caros. Foi-se desfazendo das coisas. Continuou viajando, enquanto ainda tinha dinheiro. Jamais perdeu o costume de renovar o guarda-roupas de mês em mês. Os empregados foram abandonando a casa aos poucos. Apenas João Miguel, o motorista, resistiu até o penúltimo dia. Os carregadores da transportadora chegaram dez minutos atrasados. Ela quase se recusou a fazer a mudança. Poucas coisas sobraram. Mas Cecília fez questão de que tudo fosse bem embalado e acomodado nas caixas de papelão. Saíram de Alphaville ao meio-dia. Cecília não sabia aonde acomodar a dúzia de garrafas de vinho no sobradinho que alugara na Lapa. No Alto da Lapa, que é mais nobre. Soube há uma semana que Jorge e Henriqueta vivem confortavelmente em Nova Iorque. Reza todos os dias para que um avião caia em suas cabeças. |
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