A
IRA
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Luís
Augusto Marcelino
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Verônica caminhava calmamente pelas ruas da Lapa. Parava de vez em quando em frente as vitrines. Olhou sapatos, móveis, vestidos, calças jeans, livros. Tudo pela hora da morte. Não pensou que reagiria assim ao comunicado da demissão. Já tinha pensado nessa hipótese - a de ser despedida - e tinha quase certeza de que espernearia. Era possível que avançasse no pescoço do chefe. Xingaria. Acusaria. Mas não fez nada disso. Saiu da sala de reuniões muda. Recolheu seus pertences da gaveta, despediu-se com naturalidade, dirigiu-se à saída controlando o andar. Parecia que nada tinha acontecido. Então foi direto para a 12 de outubro. Gostava de entrar nas lojas, pegar os objetos, pechinchar, reclamar da qualidade dos produtos. Porém, naquela manhã, não quis fazer nada disso. Só quis olhar. Andou cerca de meia hora. O estômago pediu-lhe algo. Ela adiou. Ainda tinha que ver uma boneca para presentear a sobrinha. Tinha prometido à Fernanda que lhe daria a boneca. Era aniversário da menina. Sete anos. Sete anos é tempo pra c... - concluiu. Em dezembro completaria doze anos de firma. Não estudou. Não namorou. Viajou muito pouco. Trocou o descanso das férias por bicos como vendedora de cosméticos. Viveu para o trabalho. Fez um pé de meia razoável. E desenvolveu uns pés de galinha que chamavam a atenção. Encontrou a boneca. Vinte cinco reais. Preencheu o cheque e o entregou à vendedora. Ia saindo da loja. Senhora, senhora! - gritou a vendedora. A boneca. A senhora estava esquecendo a boneca. Ela sorriu e agradeceu. Entrou numa pastelaria. Fazia tempo que não comia pastel de pizza, como na época em que ia com a mãe à feira livre da Estrada do Sabão. Dona Alzira pedia de carne; ela de pizza. Sempre. Provou o de palmito uma vez, mas não gostou. Parecia pastel de baba de cachorro sarnento. Então nunca mais quis saber de outro sabor. Um pastel de pizza, por favor! E um guaraná. Diet, por favor. Odiava o gosto de refrigerante diet, mas estava engordando muito - as roupas estavam quase sem servir. Tinha muitas roupas. E a maioria delas usava no escritório. Gostava de ir trabalhar bem arrumada, cheirosa, penteada, maquiagem sempre em dia. Pensando bem, me dá uma coca-cola normal, por favor! Agora não adiantaria ficar seguindo o regime à risca. Que se danassem as roupas caras que comprava. Queria uma coca-cola e pronto! E o pastel de pizza. - Sinto muito, senhora. Mas acabou o orégano. Pode ser sem o orégano? Ela suspirou. Olhou para o relógio. Quase dez minutos para o rapaz do balcão descobrir que não tinha orégano. "Pode ser sem?..." Ele, acaso, estaria maluco? Como comer um pastel de pizza sem orégano? - Escuta, filho... Você levou meia hora para dizer que quer me fazer um pastel incompleto. Se for de graça, eu topo. Se não, isto é, se eu tiver que pagar, eu espero você ir aonde quer que seja comprar o orégano, ok? Isto é atender o cliente, aprenda! - Mas, senhora... - Nem mais, nem menos. Cadê o gerente? - Aqui não tem gerente, não senhora. Tem o seu Hiroshi, que é o dono. Mas ele não está aqui. Tem eu e o Manezinho, somente. A senhora não quer um outro pastel, então? - Isto é um absurdo! Já lhe disse que quero um pastel de pizza, c...! Será que não fui clara? O rapaz enrubesceu. Verônica tinha conseguido chamar a atenção dos outros fregueses. Ele se dirigiu a uma portinha no fundo da pastelaria. Trouxe consigo Manezinho que, pelo jeito, era quem fazia a massa e o recheio dos pastéis. Manezinho era gordo, usava barba, carregava no ombro direito um pano de prato. Foi direto falar com a freguesa, que gritava, àquela altura, que aquilo era uma espelunca nojenta, que eles usavam carne estragada, que o ambiente fedia, que os fdp dos funcionários cuspiam na massa, que não tinham educação. Manezinho pediu-lhe calma. "Calma o c... tá pensando que tá falando com quem? Tenho os meus direitos, sabia? Quer que eu chame a polícia, seu nojento?" Manezinho argumentou que não era necessário que ela ficasse daquele jeito. Que ela podia pedir qualquer outra coisa, que seria cortesia da casa. Aí ela se irritou de vez. Pergunto-lhe se pensava que ela era uma mendiga. Acusou-lhe de estar querendo comprá-la. Só chamando a polícia mesmo - berrava. - Escuta aqui, miserável: enfia esse pastel lá mesmo, onde você está pensando. Eu vou te f... vou esperar seu patrão chegar e contar tudo pra ele. Você vai parar no olho da rua, cê vai ver! A polícia chegou vinte minutos depois do início da discussão. Seu Hiroshi, bem mais tarde - foi avisado pelo outro funcionário. Verônica não corre mais risco de vida. O óleo quente queimou-lhe uma das faces, o pescoço e o seio. Dizem que, com uma cirurgia plástica, ela volta quase ao normal. Manezinho está detido no 72º DP, acusado de tentativa de homicídio. Seu Hiroshi prometeu que nunca mais deixará faltar orégano. |
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