A
GULA
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Luís
Augusto Marcelino
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Procópio não podia ser considerado gordo. Nem magro. Era, por assim dizer, proporcional. No entanto, segundo ele próprio, tinha duas grandes paixões: o almoço e a "janta". Não que deixasse de valorizar o café da manhã. Pelo contrário! Vanusa, sua esposa, acordava todos os dias às seis da matina para preparar os três ovos mexidos com queijo, a salsicha mergulhada na pomarola, os quatro pãezinhos franceses levemente requentados com manteiga mineira e a jarra de suco de laranja sem açúcar. "Que é para não prejudicar a saúde!" - dizia meu amigo. Mas as principais refeições do dia eram momentos sagrados, únicos. Ao ponto de ele largar o que estivesse fazendo quando os ponteiros do relógio de parede da loja onde trabalha se encontravam, o que já havia lhe rendido broncas homéricas do seu Geroldo, proprietário do estabelecimento erguido no Alto da Móoca. Sorte do Procópio ter sido campeão de vendas há vários meses. O velho Geroldo acabava relevando. Seu restaurante predileto era qualquer um, desde que as porções fossem generosas e que estivesse acompanhado do Duda - seu esquelético companheiro de trabalho que sempre vivia sem apetite. Desde janeiro, porém, a amizade entre os dois foi abalada. Isto porque, depois de mandar pra pança seu prato caprichado e de devorar o que sobrara do virado à paulista do Duda, Procópio se sentiu traído ao ver o amigo oferecer a sobremesa - um manjar chinfrim servido num copinho descartável - para um moleque de rua que perambulava, na surdina, pelo restaurante do Manel. Procópio nada falou naquele instante, mas desde então virou a cara para o antigo parceiro de garfo. Afinal "aquilo não era justo. Quantas e quantas vezes eu não encobri as presepadas do Duda na loja?... e justo naquele almoço, desde a primeira garfada, enquanto a couve refogada deslizava suavemente em direção ao estômago e os dentes trituravam impiedosamente os avantajados grãos de arroz, eu pensava em saborear cada milímetro da calda de ameixa daquele manjar, logo após eu detonar meu pudim de leite". Embora fosse um profundo apreciador da culinária, Procópio jamais pôs os pés na cozinha para fritar um ovo, que fosse. Seu forte era mesmo consumir. Dizem que mamou até os oito anos de idade e que sua mãe o acostumou a movimentar o maxilar tão logo o menino abriu os olhos. Para completar, casou-se com a mineira Vanusa - cozinheira de mão cheia que não se cansava de inventar novos pratos a cada semana, para deleite do marido. Na semana passada, porém, Procópio estava inconsolável. - Que é que tu tens, Procópio? - perguntei ao vê-lo cabisbaixo na mesa da lanchonete XL. - Minha vida acabou, amigo. - Não diga uma tolice dessas... - Acabei de receber a notícia do médico. - Oh, meu Deus! Vai me dizer que... - É. Não tem jeito. O doutor falou que, se eu não iniciar um regime já, vou para a cucuia. - Mas ele cortou tudo? - Não, nem tudo. Mas o que mais gosto vou ter que deixar de lado. O resto da vida sem comer lasanha, Juvenal. Pode? Acho que prefiro morrer amanhã. E o pior é que, justo hoje, a Vanusa preparou uma lasanha aos quatro queijos com molho de carne moída. Não sei se vou ter coragem de dizer pra ela que não posso mandar pra dentro. Tentei consolá-lo, mas foi impossível. Ele continuou com o semblante entristecido e reclamando do regime forçado que teria de fazer. Desabafou por duas horas e depois se dirigiu para casa. Morri de dó, mas fazer o quê? Melhor abrir mão da comida exagerada do que ir para o beleléu - concluí. Quando cheguei em casa, minha mulher avisou que o Procópio tinha ligado e que precisava falar urgente comigo. Assustei-me. Será que ele quer fazer alguma loucura? Sei não, o cara é tão viciado em buchada de bode que é capaz de se matar! Liguei. - Oi, Juvenal! Que bom que ligou. - Fala, Procópio. Qual o problema? Estou preocupado contigo, amigo. - Nada não. Escuta: o médico ligou e disse que tinha pego o exame errado. Longos anos de vida pela frente, Juvenal! Graças a Deus! Desculpe eu estar te incomodando a essa hora da noite, mas precisava expressar minha alegria. - Que bom, Procópio! Então amanhã a gente se fala lá no bar do Russo, fechado? - Se Deus quiser, amigo! Deus não quis. Na mesma noite Procópio morreu. Para comemorar a notícia dada pelo médico, meu amigo pediu para Vanusa assar um peixe que adormecia no freezer. Engasgou-se com a espinha. |
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