VIOLÊNCIA
COR DE ROSA
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Beto
Muniz
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Ainda fico impressionado com o poder de transformação da ira. Ela deforma o homem e apesar de ser um dos pecados capitais costuma se manifestar quase que sem restrições entre crentes e infiéis. Todas as guerras, revoluções, revoltas e até mesmo uma briga em família tem a manifestação dela, da ira. Ou do ódio, que é seu irmão mais velho. Eu convivo com ela no trânsito constantemente, no entanto, fui pego de surpresa pela manifestação mais insólita e pura desse pecado: inocentes se rebelando contra uma decisão um tanto quanto insensata - para não dizer burra! Moro num condomínio com seis prédios. Cada bloco tem seu salão de festas, seu salão de jogos, sala de ginástica e playground. Até aí tudo bem, os moradores respeitam a área de cada bloco sem grandes problemas de invasão. Menos no playground. Como controlar o ir e vir de crianças com a faixa etária nos dois anos? Então os moradores se reuniram em assembléia e estabeleceram, num acordo escrito, votado e depois registrado em ata, que os parquinhos externos são áreas comuns, assim como a piscina, as churrasqueiras e as quadras. Todos podem ir e vir de acordo com a posição do sol. Em dias de verão as mães procuram os parques protegidos pela sombra de um dos blocos e nos dias de inverno, balanços livres de sombras... Nada mais normal. Acontece que um dos blocos quebrou as regras. A comissão de moradores do bloco amarelo comprou piscina de bolinhas, balão pula-pula e outros brinquedos de cores e formas diversas. Apetrecho de diversão que só se encontra em festas de grande porte... Uma maravilha! O sonho de consumo de qualquer criança com idade abaixo de três anos. Comprou e montou um parque no antigo salão de ginástica - a diversão dos pequenos é mais importante que a forma física dos grandes. Bacana. Mas (e sempre existe um "mas"), o grupo de pais investidores decidiu que apenas os seus pimpolhos, ou seja, só as crianças do prédio amarelo poderiam utilizar os brinquedos. Registraram em nova ata a modificação e o zelador cumpriu a ordem fechando a enorme porta de vidro que dá acesso ao playground dos sonhos infantis. Na ata da assembléia não estava prevista a reação contrária do MISPB - Movimento Infantil dos Sem Parquinho Bonito. Um bando de crianças, nenhuma acima de três anos, surgiu de todas as partes. Do prédio verde, do azul, do rosa, do bloco cinza e até do bloco bege, que é um prédio de apenas um dormitório e parecia não ter crianças. O bando mirim atacou a porta de vidro numa fúria descontrolada. Chutando, batendo com a mamadeira no vidro ou apenas gugu-dadando brados de guerra o pelotão partiu para o ataque. A menina de chuquinha rosa engatinhou forçando passagem por debaixo da porta e um garotinho arremessou o carrinho de madeira contra a janela lateral... As mães, pegas de surpresa, até tentaram retirar os filhos mas só conseguiram que seus pimpolhos abrissem o berreiro. A revolta era tamanha, que deflagrado o movimento ninguém aceitava chupeta ou mamadeira para desistir. Uma mãe, desesperada com o choro do filho, ofereceu o peito e pareceu-me que foi mordida... Disso eu não tenho certeza, deduzi pelo gestual. Uma garotinha empolgada com a adesão maciça, pegou um graveto no jardim e, apenas com o poder inocente da imaginação, o transformou em chave. Demorou um tempo até perceber que não conseguiria abrir a fechadura. Desistiu atirando o graveto contra o zelador do bloco amarelo que chegava. Com a chegada do representante do bloco amarelo eu tomei partido e comecei a torcer pelas crianças, mas não interferi. O mesmo não aconteceu com as mães, que tomaram as dores dos filhos fazendo o tumulto ganhar voz - até então o movimento era regido por resmungos chorosos e ininteligíveis. Quando a manifestação do MISPB ganhou a adesão do MBSPB (Mães dos Bebês Sem Parquinho Bonito) foi o auge. O zelador fugiu pela porta corta fogo em busca da sindica. Ela que não é besta acionou o sub-síndico juntamente com seu pelotão de choque, composto pelo tratador da piscina, três faxineiras e um rapazinho que estava dando manutenção na antena coletiva. Adultos opressores versus bebês no playground. O discurso capitalista do sub-síndico não convenceu os socialistas mirins, que tomados de ira diante do obstáculo impedindo a diversão, partiu definitivamente para o ataque justamente quando chegava a cavalaria acionada pela síndica. Os cinco zeladores dos outros blocos. Da janela do meu quarto, bem defronte ao pátio dos atritos, eu apreciava a batalha. Minha filha (um ano e sete meses) liderava um pelotão frontal, a amiguinha dela (um e oito) cobria o flanco esquerdo distraindo a atenção do zelador do bloco azul, enquanto o garotinho (um e nove?) invadia pela direita. Dois kamikazes loiros (dois anos!), um sem fraldas e o outro descalço de um pé, tentaram quebrar o vidro com as testas. A mãe de um deles socorreu o filho errado, mas recuperou-se a tempo e resgatou o certo que já chorava o abandono e a dor onde no futuro lhe nascerão cornos. Apoiados discretamente pelo MBSPBO um grupo compactado de seis ou sete pequeninos conseguiram romper o cerco e, fiquei sabendo depois, se entrincheiraram na piscina de bolinhas. A partir de então perdi a visão da batalha e não soube quem foi que bateu em retirada primeiro. O saldo da revolta mirim foi um sub-síndico renunciando ao cargo, dois zeladores demitidos, um por justa causa - agressão a morador com agravante de o morador ser um bebê, e o outro por insubordinação - ele se recusou a cumprir ordens do sub-síndico e retirar um garotinho agarrado ao escorregador-girafa. O zelador do bloco amarelo manteve o cargo, mas perdeu um pedaço da perna nos dentes afiados da menina (dois e um mês) com fraldas da turma da Mônica. "A menina é vacinada" - ouvi a mãe gritar, enquanto olhava feio para o homem que levantava a calça pra provar a agressão. Foi atendido pelo porteiro que abandonou o posto para trazer a caixa de primeiros socorros. Entre demitidos e feridos, salvaram-se os anjinhos. As mães protestaram, gritaram, brigaram entre si, militaram pelos filhos e quando o clima esquentou levantaram acampamento com suas crias, mamadeiras e fraldas. No início da noite, quando os maridos chegaram do trabalho, cada qual contou sua versão dos fatos. Antes do Show do Milhão, os pais revoltados e devidamente acompanhados de suas senhoras e pimpolhos, estavam em coro protestando contra a determinação do bloco amarelo. Consenso geral, optaram por assembléia de emergência, na quadra mesmo, e registraram na ata que os playgrounds internos pertencem a área comum. Assim como a piscina, as churrasqueiras e as quadras. No dia seguinte, o condomínio retomou a paz costumeira e os anjinhos do MISPB comemoraram a vitória no playground amarelo. Os outros parquinhos do condomínio estavam abandonados. Seus balanços, escorregadores, gira-gira, gangorras, casinhas de bonecas e caixas de areia não concorriam de igual para igual com o gira-gira em forma de elefante, nem com a gangorra jacaré. Tem fila pra entrar, mas ninguém é barrado por muito tempo... E se demora muito, é só dar um grito que o zelador, manquejando da perna direita, retira um e permite a entrada do que protestou. Rodízio de crianças para entrar na piscina boca de hipopótamo. Na taxa de condomínio do mês está rateado o custo extra com os brinquedos porque, ao contrário de nossos filhos, somos todos capitalistas. Quem não tem filho já manifesta uma certa ira contra nós, os pais. |
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