Tema 024 - A PERFEITA SOLIDÃO
BIOGRAFIA
SOLTEIRICE CRÔNICA
Roseli Pereira

Enquanto eu era criança, adolescente, jovenzinha, muitas coisas mágicas aconteciam na minha casa e na minha vida. Comida brotava na geladeira, nas panelas e nos armários. Produtos de limpeza nunca terminavam. Envelopes com um pouquinho de dinheiro vira e mexe apareciam na minha mão. Mas, em contrapartida, eu não tinha um pinguinho sequer de privacidade.

Com o tempo, fui perdendo a maior parte dessa magia. Mas fui conquistando outros tipos de vantagem.

É bem verdade que a roupa usada que coloco no cesto ainda aparece limpa e passada sobre a cama, uns dois ou três dias depois. Que a poeira e a louça suja desaparecem do dia para a noite. Mas fora esse rastro maravilhoso e (quase) inofensivo da minha fada madrinha, o que encontro à noite, quando abro a porta da sala, é exatamente o mesmo silêncio e o mesmo escurinho que deixei pra trás de manhã.

Nada mais acontece se eu não fizer ou não quiser. E nada, a não ser o meu telefone ou a minha vontade, vai poder mudar o que eu quero ou não quero fazer. É exatamente neste ponto que reside o enorme prazer de morar só.

A cozinha pode estar fria. Posso até precisar tomar banho com shampoo. Mas quem escolhe o CD e o volume do CD player sou eu. E também posso largar a toalha molhada onde bem entender. E deixar as calcinhas penduradas no box. E dormir com a televisão ligada. E um mundo de outras coisas que me irritariam muito se não partissem de mim.

Parece cinismo? Parece egoísmo? Deve ser mesmo um dos dois. Ou os dois. Mas ninguém pode negar que isso tudo é muito bom.

Você pode até adorar seu casamento. Você pode até não saber viver só. Mas confessa aí o seu sonho de consumo: é o controle do controle remoto ou é aquela viagem de três dias que o outro vai ter que fazer? Heim? Heim?

E chega uma hora em que o solteirão convicto começa a achar que dividir o mesmo quarto e usar o mesmo banheiro é pura promiscuidade. Também, não é pra menos. Você lá, babando no travesseiro, roncando e assoviando, resmungando durante o sonho, levantando com a cara amassada ou coisa bem pior, e o ser amado lá, também. Do seu ladinho. Tendo que assistir, ouvir e sentir tudinho de camarote. Pelamordedêus! É preciso ter muito poder de abstração pra manter o romantismo. Sem falar no tesão.

Tudo bem, você pode ser uma pessoa poderosa em termos de abstração. Mas será que alguém consegue abstrair alguma coisa quando está plantado no seu vaso, distraído, relaxado, bem no meio de uma reportagem interessante, e alguém começa a bater na porta dizendo que precisa entrar?

E rápido?

É… como já dizia a minha avó, é preciso casar cedo pra aprender a dividir. Não sei se isso é genético mas concordo. Tanto que não quero dividir mais nada: daqui pra frente, meu negócio é somar.

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