Tema 024 - A PERFEITA SOLIDÃO
BIOGRAFIA
ORA, DIREIS
May Parreira e Ferreira

É noite no cerrado. Sentada na varanda da casa, céu aberto a mostrar suas faces, olho as estrelas. Passei o maior tempo de minha vida observando pessoas, animais e plantas, nesta mesma ordem de interesse. No meu universo de bebê engatinhador, descobri que os pés mostram o caminho da curiosidade. Quase cinco décadas depois, a vida me permite olhar as estrelas e não sapatos.

Alguém um dia me falou que existem qüinqüilhões delas, quanta sonoridade, um qüinqüilhão de estrelas, logo ali bem diante de meus olhos insones na noite quente do cerrado.

Sentada na varanda da casa eu observo o meu qüinqüilhão. Consigo enxergar uma grande porção de estrelas autistas, sozinhas, sem contato. Isoladas de suas famílias e amigos. Tristes devem ser. Vejo também as que estão agrupadas, em famílias, talvez promíscuas ou confusas em trios, quintetos.

Muitas das estrelas que vejo daqui da minha varanda são ligadas aos pares. Serão amantes? Devem ter levado um trilhão de anos-luz para se encontrar, consumido um outro tanto para a aproximação. Enquanto admiro sua intimidade, quantas já não terão se separado, morrido? Eu aqui, sentada na varanda, pensando em dor de amor, olhando meu próprio umbigo, sem conseguir mensurar a tristeza estelar. A observação comporta agüentar frustrações, eu sei. Sinal de amadurecimento.

Por um acaso do destino, viemos parar no Portal do Cerrado. Céu azul, um sem fim de horizontes, cores vibrantes. Deixando em São Paulo as raízes espalhadas. Sinto neste momento que não quero me desligar, não quero estar separada enquanto ainda me vejo unida. Sinto a dor de estar distante das próprias referências, éticas e estéticas. Ser gregário que sou, dentro de meu pequenino mundo terrestre, entendo o sentido da distância.

Saudade dos filhos, da família, de meus amigos da vida toda, do parque onde faço minhas corridas, de meu grupo de escrivinhaduras. Sem mencionar a cidade amor-ódio, seus encantos, sua rudeza. Começa a dar uma tristeza sem nome. Fazer o quê? A vida vale a pena se houver angústia, desespero, eu sei. Sinal de conhecimento das outras coisas. Não houvesse dor, eu não estaria na varanda.

A cor do céu quando tem lua cheia, é violeta. E mesmo a claridade da lua não esconde o qüinqüilhão de estrelas.

A noite é quente, a água da pequena piscina do meu jardim está morna. Dou um mergulho sentindo um susto no corpo. As luzes da casa apagadas, ouço vozes na rua. Crianças que vão dormir tarde, adultos que voltam de alguma festa. O resto é um silêncio sem fim interrompido por guinchos de morcegos voando ligeiros atrás de pequenos insetos. E o casal de corujas brancas, que habita o sótão da vizinha, batendo suas longas asas em busca de presas. São diferentes as noites no cerrado. Flutuando, meu corpo me leva a tantos lugares.

A noite ainda é quente e a realidade não cabe num mundo de definições. Sento-me novamente na varanda e invadida pelo perfume do jasmim volto a observar o céu.

Protegido de acordo com a Lei dos Direitos Autorais - Não reproduza o texto acima sem a expressa autorização do autor