INSETOS,
CUIDEM-SE!
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Lisa
Simons
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Ao ser indagado sobre o porquê de nunca ter feito um trabalho com inspiração tropical, Dalí se justificou dizendo que criar nos trópicos era missão impossível. As mariposas, borboletas e outros bichinhos de asas menos gentis e abundantes por aqui, o irritavam profundamente tirando-lhe a concentração. Naturalmente, era mais um depoimento absurdo dado exclusivamente para reforçar sua excentricidade, recurso usado com freqüência para subir o preço de suas telas. Gaugin, por sua vez, naturalmente amava os insetos, uma vez que procurou nos trópicos, o estímulo essencial para continuar seu processo criativo, considerado por ele esgotado na atmosfera européia. Somente as cores quentes conseguiriam inspirá-lo novamente. Que viessem, pois, as mariposas, as libélulas e até os insetos invasivos e menos inofensivos, que seriam, meio século depois, tão nocivos ao surrealismo de Dalí. Por volta dos meus onze anos, ao me aventurar nas tintas, desconhecia essas peculiaridades dos grandes mestres, mas cismei em pintar borboletas, mariposas, escaravelhos, todos em grandes proporções, carregados nas tintas e densos (o último recurso eu obtive utilizando areia misturada à cola branca dissolvida em água). Para tanto precisava de modelos para reproduzir nas telas o objeto do meu desejo. É bem verdade que, naquela época, esses insetos eram abundantes nos quintais das casas do bairro do Prado e nos jardins das freiras do Colégio Monte Calvário. Entretanto, como Dalí, eu não me dava bem com bichinhos de asas, utilizei-me, então, do seguinte expediente: convoquei a garotada de minha rua a fazê-lo, seduzindo-os com picolés caseiros de coco e chocolate. Os garotos, estimulados pelo prêmio e já munidos com puçás que eu mesma fizera utilizando o filó de um antigo cortinado, empreenderam uma jornada cruel e alucinada, à cata de minhas pequenas vítimas. Apesar da advertência de que modelos dilacerados ou repetidos não serviam e que a beleza e originalidade seriam bem remuneradas com picolés em dobro, ao final do dia, eram tantos bichinhos repetidos que acabei por jogá-los no lixo, cheia de remorso, mas satisfeita com o resultado. Havia de tudo: muitos exemplares raros de mariposas com asas amarelas, contornadas de bordô, borboletas azul-cobalto, salpicadas de bolinhas alaranjadas, escaravelhos facetados em cores diversas, besouros listrados verde e terra e ainda libélulas rosadas, que eu nunca havia observado. Dei início ao trabalho, que virou objeto de cobrança dos algozes contratados para o servicinho sujo, já que eu mesma, como disse, era incapaz de capturar uma borboleta sequer. Vez por outra um aparecia e elogiava as cores, talvez no intuito de me consolar, o que era impossível, porque eu sabia que o resultado não era o imaginado pelo meu delírio artístico. Não preciso dizer que as pinturas ficaram tenebrosas. A imobilidade das asas, o contorcido dos corpinhos frágeis, as patinhas e antenas enroscadas evidenciavam a ausência de vida. Assim, o que ficou registrado causava até um certo asco. Minha mãe, como toda mãe, as considerou coisa de gênio, salvando minha auto-estima e varrendo minha autocrítica, felizmente reabilitada com o tempo. Naturalmente se eu conhecesse, à época, as três leis supremas do desenho: Observar por longo tempo o modelo mesmo que ele esteja em movimento, compreendê-lo profundamente e executar o trabalho num instante, certamente teria poupado a vida de tantos inocentes, que serviram apenas ao capricho da pretensiosa artista. Passados tantos anos a culpa pela eliminação da bicharada, apesar de recalcada no mais fundo do inconsciente, como já dizia Dr. Freud, por vezes ainda se manifesta em forma de pesadelos terríveis, onde eu me vejo presa a uma teia imensa, completamente imóvel e fria, enquanto um líquido gelatinoso e ácido cai em meu ventre e me corrói as vísceras. Quanto às telas... Há décadas estão amontoadas num canto do quarto de serviço, amarradas em plástico bolha. |
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