Tema 021 - QUASE
BIOGRAFIA
QUASE UM POEMA
Rosi Luna

A palavra iminente parecia uma placa luminosa, brilhando na cabeça. Ela acordou pensando em tudo que quase acontecia, resolveu jogar com a sorte, se desse o resultado esperado ligaria pra ele. Pegou uma margarida do jarro em cima de mesa e começou a desfolhar vagarosamente.

- Bem-me-quer mal-me-quer, bem-me-quer mal-me-quer, depois de chegar na nona pétala terminara em bem-me-quer.

Pensou com seus botões de margarida, se ele bem-me-quer, e a sorte sorria resultados positivos, é que tinha que fazer acontecer, tinha que provocar o tal encontro com ele. Não podia mais viver de incertezas, vejamos. Quase rasgou a meia calça ontem, quase comprou um sutiã que aumentava os seios, quase comprou sorvete de morango, quase comprou passagem pra viajar, quase não escreveu por medo de não saber as palavras certas, quase o perdeu por fingir que ele não mexia com seus sentimentos. Vivia de beijos de lábios que não se tocavam, de noites de luar que não aconteciam, de uma vontade de perguntar, lembra de mim?

Era sempre quase, por um triz, quase o tocava, e quase sempre se esquivava. Vivia de iminências de acontecimentos. Andou pra lá e pra cá uns cinco minutos, tinha uma sensação de insegurança. Precisava de um café urgente. Abriu a garrafa térmica e despejou o precioso líquido marrom fumegante na xícara. Ficou observando a fumacinha subindo. Café amargo nem pensar, tinha que adoçar urgente. Mas a dúvida lhe atormentava, perder aquele espetáculo da fumaça subindo.

Fez um movimento rápido e foi quando aconteceu a tragédia. A xícara rolou e o café foi tinturando tudo que encontrava pela frente. Quase conseguiu salvar o dicionário. Mas o líquido foi mais ágil e penetrou bem no meio das folhas brancas. Se amargurou por ser tão desorganizada, lugar de dicionário é na estante da sala e não na mesa da cozinha. Lembrou que tinha ido olhar o significado da palavra onomatomania. E agora do que adiantava saber que, segundo as palavras do dicionário moreninho de café, onomatomania era "preocupação obsessiva e doentia pela escolha das palavras, ou dificuldade ou impotência de encontrar um vocábulo que se procura". Concluiu que era um onomatômano crônico, e agora que palavra podia falar que não fosse um palavrão. Resolveu conter o impulso de xingar, não iria adiantar nada, o tingimento estava feito. Pensou no lado bom da coisa, que ia ter um dicionário perfumado com aroma de café, isso devia ter algum significado. Estava bem ali na sua frente a resposta. Era isso, ia ligar e convidar seu queridinho para um café.

Precisava se preparar para o tal telefonema. Resolveu tomar um banho para clarear as idéias. Abriu a água do chuveiro tão fumegante quanto o café, parecia querer que a pele fosse queimada. Tinha uma mania louca de extremos, logo em seguida abriu a torneira no último estágio e deixou a água gelada percorrer o corpo. Aquela sensação de quente e frio era a cara dos seus relacionamentos. Banho tomado, tentou imaginar o diálogo.

- Alô, tudo bem, aqui é a Alice.

Mas que raios de abordagem mais comum, e que tal essa.

- Oi, adivinha quem está falando?

Abriu a lista telefônica na página de Serviços de Interurbanos em códigos de acesso, teve que fazer um esforço enorme para conseguir ler, a letra era minúscula. Pensou em outra abordagem.

- Oi, adivinha quem está falando?

- Não tenho a menor idéia.

- Vou dar uma pista, alguém que você conhece bem.

- Que pista fraca, não dá pra falar algo com mais substância.

- Ah... dá, sustagem.

- Com esse senso de humor, já sei.

- Fala um nome.

- Isildinha.

- Não.

- Então é a Marta, aquela da boca de Iracema.

- Olha você tá longe de acertar, desisto.

- Vai não me deixa curioso, fala quem é.

- Sou alguém que ia te convidar para tomar um café.

- Olha meu médico proibiu cafeína, mas vou tomar café com você, se eu te conhecer como você diz que conheço.

- Não vou falar, vou desligar.

- Fala, que assim morro do coração.

- Vou dar a última pista, começa com A.

- Como pude esquecer de você minha pequenina Aninha, meu brinco, meu tesouro de delicadeza, gosto de você, que bom que ligou.

- Vou desligar.

- Não faz isso, tomo café, champanhe, água, cachaça, tomo qualquer coisa contigo, nunca te liguei pois achei que você só tivesse olhos para o Frederico.

- Tá louco homem, que Frederico?

- Me chamo Alice e não conheço nenhum Frederico. Quem está falando?

- Aqui é o Carlos e não conheço nenhuma Alice.

- De qual cidade está falando, e qual o código de acesso daí?

- Itabira, código 31 em Minas Gerais.

- Jesus Cristo, era para discar a cidade dele, código 33 de Itabirinha de Mantena em Minas, conhece? Pode olhar na lista é a cidade que deve ficar logo abaixo de Itabira, me desculpa foi engano, estou procurando o Marinho.

- Agora você me arrasou, não tinha programa pra hoje, se não encontrar o tal Marinho me liga que encontro contigo.

- Você fala de onde?

- Não vou falar o nome da cidade, mas é do triângulo mineiro, não te conheço, vai que é um tarado.

- Calma dona Alice, não sou tarado, sou um poeta.

- Jura! Com livro publicado e tudo?

- Claro, com vários livros de poemas publicados, na lista dos mais vendidos.

- Já tens minha simpatia, gosto de Itabira e gosto de poetas, e de Itabira tem um que adoro, acho que não foi um engano, foi um acerto.

- Como é seu nome todo?

- Carlos Drummond de Andrade.

- Me dá um autógrafo?

- Não. Vai que é uma louca.

- Só se encontrar comigo para o café.

- Tchau, te ligo poeta.

- Posso te perguntar uma última coisa?

- Fala.

- Como está o céu?

- Azul límpido e com nuvens de algodão.

- Carlos, não conheço nenhum Marinho em Itabirinha de Mantena, a única coisa que conheço é a minha calça azul marinho, queria te ligar mesmo, mas sem parecer oferecida, era só um café.

- A vida de um poeta seria muito sem inspiração, se não existisse uma pessoa que vive no país da maravilhas como você, doce Alice.

- Beijo Carlos e te ligo pra combinar.

Penso nas iminências, no enganos, nos acertos, no triângulo mineiro, nas pessoas, nos poetas, nos códigos de acesso, no aroma de café. Quase encontrei com Carlos, meu queridinho. Porque não liguei pra ele. Ficou no quase. Quase um Poema.

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