QUAL
UMA LADY
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Míriam
Salles
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Laura se olhou no espelho e gostou do que viu: uma menina bonitinha, com seu vestido de chita xadrezinho de amarelo e branco e dois rococós no alto da cabeça que sua mãe enfeitara com margaridas brancas. Estava pronta para dançar a quadrilha. "Oi bota aqui, oi bota ali o seu pezinho, o seu pezinho bem juntinho com o meu..." Entrou no carro toda faceira e pediu à mãe que se apressasse pois não queria se atrasar. Afinal, seu parceiro era o menino mais bonitinho, o mais interessante, o mais inteligente da classe. Não podia pensar em decepcioná-lo. Fora seu primeiro amor há alguns anos, mas hoje infelizmente estava apaixonada por outro. Justamente agora que ele parecia tão interessado nela. Laura sempre se sentira estranha em meio as outras crianças. Com seu metro e meio de altura e seus 62 quilos, não podia ser chamada de gorda, mas era gorducha, bem gorduchinha. Odiava quando seu pai a chamava assim: Venha cá minha gorduchinha. Sentia-se como uma salsicha. Salsichas é que eram (e deveriam ser) gorduchas. Meninas deveriam ser esbeltas. Na escola sentia-se ridícula no seu calção de ginástica com elástico nas pernas roliças. Olhava as outras, magérrimas, altas, com pernas finas, vestidas em suas bermudas de helanca coladas às coxas como segunda pele e sentia vergonha de si mesma. Já sentia muita vergonha de ser somente filha do professor de português em meio a tantas filhas e filhos da Volkswagen, da Faber-Castell, da Siemens e mais uns outros que nunca deixavam claro de quem eram filhos, mas estavam sempre lá em seus carrões com motorista, casas com jardins infinitos com cavalos pastando soltos. Piscinas nas quais sua casa caberia quatro vezes e ainda sobraria espaço. Tinha vergonha de ser pobre em meio a tanta riqueza e compensava isso comendo, comendo até quase estourar. Claro, tinha seus colegas da mesma classe social também e esses eram seus amigos. Mas era tão tímida, tão calada que ninguém conseguia se dar conta de sua riqueza interior. Lia muito, lia tudo. Devorava as centenas de livros de seus pais escondida no quarto, comendo barras de chocolate e pedras de açúcar cande. Ali aprendeu o que era sexo, lendo Jorge Amado, tendo pela primeira vez contato com seu próprio corpo, sentindo pela primeira vez o prazer solitário. Sozinha sempre, aprendeu a viajar dentro de si mesma, descobrindo sonhos e anseios inimagináveis. Sua mãe às vezes se preocupava e a levava para fazer regimes fantásticos onde emagrecia um quilo por dia devido a uma injeção de sabe-se lá o que. Quilo esse que engordava a noite ao passar hipoglós nos cravos que espremia escondida no banheiro numa tentativa de autopunição. Sem ninguém que lhe explicasse, achava que tudo que fazia era errado, muito errado. Era uma pecadora. Tinha lido até "O último tango em Paris" que conseguira emprestado de uma amiga. Por sorte lia tão rápido que devorou o livro numa tarde e o devolveu no dia seguinte dizendo que não gostara do tema, salvaguardando sua imagem de pura e casta. Mas hoje tudo isso estava escondido num canto remoto de sua mente. Hoje era o dia da festa junina, a festa mais produzida da escola e ela era quem puxaria a fila com seu par, o menino mais requisitado da classe. Chegou a escola e nem esperou a mãe estacionar. - Mãe, pegue um lugar bem à frente! Correu para classe tomando cuidado para não empoeirar os sapatinhos brancos e as meias de rendinhas brancas que enfeitavam as canelas rechonchudas que, qual uma lady, só apareciam ao esticar o pé à frente. Subiu os quatro lances de escada pulando os degraus de dois em dois, o que não era nada apropriado para uma lady. Chegou quase ofegante ao corredor e lá no fim viu suas colegas em frente a porta da classe. Quando a avistaram gritaram para dentro correndo em sua direção pela primeira vez desde que estava naquela turma: - Corra Almanzo, corra. Chegou seu par. É a menina mais bonita da festa! Ele veio, olhou-a sem dizer nada. Nem precisava, ela via em seus olhos a admiração e a ternura que a pouca idade não permitia expressar em palavras. Estendeu o braço que ela enganchou em silêncio e dentro do mesmo silêncio andaram seguidos pelos outros pares até o palco da dança de fitas. Dançaram o tempo todo se olhando, se apreciando, se entendendo sem palavras. Nesse dia, ela quase foi inteiramente feliz. "... e depois, não vá dizeeer, que você, já me esqueceeeu." |
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