Tema 021 - QUASE
BIOGRAFIA
RECEITA DE SUICÍDIO
Luís Valise

“Eu desconfio que o nosso caso está na hora de acabar
há um adeus em cada gesto, em cada olhar
mas nós não temos é coragem de falar...”

Esses versos tristes de Dolores Duran refletiam à perfeição o momento ruim que eu atravessava, e para o qual não via solução que não a saída trágica. Mas qual? Então lembrei-me dos conselhos da falecida Vó Naínha sobre esforços físicos após as refeições: - mortais. Depois de almoçar, nada de jogo de bola, brincar de piques ou queimada, e menos ainda “demorar no banheiro”. Pelo menos duas horas de descanso, que a digestão pede sossego e rede. Foi então que tomei a decisão que me levou a dizer que

 

“Saibam todos os que estiverem lendo este, que ninguém teve culpa a não ser eu mesmo; e que doravante assumo total responsabilidade pelo gesto tresloucado.

Como todo amor um dia chega ao fim, não havia por que neste caso ser diferente, tirante a fraqueza de carater deste que ora redige estas linhas.

Deixo também claro que não fui forçado ao amor, e se amei foi por minha deliberada e desejada intenção, não restando à ingrata outra culpa afora não ter-me enxotado quando me aproximei. Ao contrário, sua atitude denota a piedade de quem acolhe um cão faminto e abandonado.

Bem sei que meus amigos não a perdoarão, pois foram muitas as noites em que tiveram que suportar a felicidade do meu olhar, tão solitária nas mesas em que brindava seguidamente a conversão do ateu em amantíssimo.

Às ex-mulheres não restará outro sentimento que não o de asco e repulsa por essa cigana que soube encontrar a linha que me levou ao encantamento, porque assim estava escrito.

E a mim mesmo não ficou outro caminho que não este, já que viver sem a doce criatura seria o mesmo que ao antílope ver a leoa recusar-se à sua carne oferecida.

Em respeito aos que sempre me tiveram em consideração escolhi esta forma de partida, por ser a que menos marcas deixará, além de um provável sorriso no rosto inerte."

 

 

Para aumentar o remorso da desalmada escolhi nossa cantina preferida, e à mesma mesa de sempre fartei-me dos pães de linguiça com sardela. Em seguida, e em sua homenagem, tracei um espagueti à putanesca e ainda belisquei uns pedaços de perna de cabrito à toscana. Duas malzbier se encarregaram de deixar-me a um passo do desenlace.

Para o passo derradeiro um táxi levou-me rapidamente ao endereço da deslumbrante. Do elevador chamei-a pelo celular e disse a nossa senha: - querida, cheguei! A porta já estava aberta e ela me esperava com a maquiagem que não escondia os olhos inchados. Sobre a mesa, pequenos maços de cartas e fotos que combináramos destrocar. Aceitei a mão estendida em cumprimento e arrastei-a em direção à cozinha. Antes que pudesse perguntar-me qualquer coisa, sentei-a sobre a pia e beijei-a na boca. Por entre os olhos semi-cerrados vi seus olhos abertos em espanto. Como sempre seu cheiro deixou-me excitado e num segundo minha paixão liberta procurou o ansiado caminho por entre suas roupas afastadas. Em posição de ataque e já nas bordas da trincheira ouvi a voz atônita: O quê é isso?! – A saideira, respondi. E entrei.

Procurei pelo fim curto, grosso e definitivo. Mas ela me alcançou e quando eu estava por um tantinho ela gemia me mata!, me mata!

Quando recuperei o tino estava nas pontas dos pés, arqueado como vara de berimbau e aí senti o primeiro espasmo, violento, que me fez curvar-me ao meio. Deixei-me cair no chão da cozinha e as dores aumentaram. Ouvi meus próprios gemidos e pude ver o desespero na cara da santa que perguntava o que foi, o que foi? Mal pude responder: - cãimbras! Nas duas pernas! Senti minhas calças serem puxadas para baixo com violência e fui massageado com firmeza e vinagre.

Depois de alguns minutos a dor passara e eu continuava deitado no chão, com a cabeça pousada em suas coxas, e os olhos fechados, morto de vergonha. Assim, sem ver o rosto da valquíria, ouvi um conselho ou um pedido:

- Da próxima vez deixa que eu preparo a última ceia. Depois, podemos fazer juntos um hara-kiri. Na cama, Abelardo. Na cama.

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