CAROS
OUVINTES
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Luís
Valise
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Vambora, vambora / Tá na hora, vambora, vambora... Tão logo o rádio-relógio jogava no ar os acordes da sinfonia que o Tom Jobim mais o Billy Blanco fizeram pra São Paulo ele esticava o braço e mecânicamente apertava o pause que lhe dava mais dez minutos de cochilo. De dentro do cochilo ouviu um me dá um abraço. Tentou mergulhar mais fundo no torpor aconchegante e de novo veio a voz me dá um abraço. A consciência relutante veio à tona, o olho abriu pela metade e lá estava ela ao seu lado como em todas as manhãs dos últimos treze anos. Cabelos desgrenhados, rosto marcado pelo vinco da fronha, hálito com cheiro de azeitona verde, pedia um abraço com os olhos semicerrados, só um tantinho mais desperta que ele. CATORZE ANOS! Subitamente acordado lembrou do aniversário de casamento. Chegou-se mais perto e deu o abraço com o entusiasmo com que abraçaria o chefe no fim de ano. Parabéns por ter-me agüentado todo esse tempo, brincou. Ela nem sorriu: obrigada, eu mereço mesmo. Ele pensou e eu então?. Enquanto fazia a barba perguntou à mulher que estava no chuveiro vamos convidar o Lenílson e a Olga pra jantar fora? De dentro do box veio a resposta enigmática: não, hoje eu quero algo muito diferente, chega de monotonia. A gilete parou suspensa no ar: monotonia? Do que você está falando? O barulho da água abafava a voz: ontem na televisão eu ouvi que o pior de um casamento é a monotonia, que devemos fazer tudo pra evitar isso. E que quando existe amor, tudo, mas tudo mesmo é válido. A porta do box se abriu e a cara dela apareceu, sacana: hoje eu quero algo MUITO diferente. Depois, ele já estava quase pronto e ela continuava com o mistério. Vai, Nenê, diz logo o que você quer que eu tenho que sair. Tá bom, eu falo, se prepare: eu quero ver você com outra. O queixo caído, a boca num Ó mudo deste tamanho, os olhos arregalados. É isso mesmo que eu quero: ver você na cama com outra. E o argumento sutil como um porco-espinho: eu sei que depois de todo esse tempo comendo a mesma comida você deve estar louco pra variar. Não negue! Você deve estar louco por uma coisa diferente. Então eu deixo, se você me deixar ver. É isso. Impossível pensar em trabalho. Estava na oficina mas não estava. Ainda ligou pra ela: Nenê, pensa bem no que cê tá pedindo. Isso não vai dar certo, não é certo, vamos continuar como sempre, eu não preciso variar porra nenhuma. Ela respondeu, baixinho: de pensar em você com outra eu já estou com tesão...e se de repente eu cismar de participar?...já faz algum tempo que eu venho pensando nisso...me liga com os dados, tá? Chega de monotonia. No motel, como combinado, a porta estava destrancada e ela entrou. Vambora, vambora / Olha a hora, vambora, vambora... A voz monocórdia do locutor encheu o ar, impessoal: Tragédia no motel. Mulher mata marido e marafona (o redator era um gênio ou um cafona). Neusa dos Santos, do lar, desconfiava que o marido, o mecânico Teodoro José dos Santos, conhecido como Zé da Graxa, a traía. Ontem, aniversário de bodas de matrimônio do casal, ele não chegou em casa à hora de costume. Alertada por um telefonema anônimo dona Neusa dirigiu-se ao motel Estúpido Cupido, onde logrando adentrar sem ser notada, penetrou no quarto ocupado pelo adúltero, onde o mesmo encontrava-se completamente despido, em decúbito dorsal sobre a cama redonda, recebendo os préstimos orais praticados por Izilda Gomes, que também atendia pela alcunha de Boca de Manteiga. Ao deparar-se com tão chocante cena, a esposa ultrajada foi presa de incontrolável fúria, e apossando-se da arma de fogo pertencente ao marido e que se achava sobre uma cadeira, desferiu diversos disparos na direção dos desnudos corpos (o redator não era mole) da parelha traidora, vindo a desfalecer em seguida. Socorrida e depois amparada pelos policiais que atenderam a ocorrência, foi encaminhada ao vinte dp onde prestou declarações, tendo sido posteriormente dispensada para responder ao inquérito em liberdade. Ouvida pela nossa reportagem após o infausto acontecimento, (e aqui o redator não conseguiu esconder toda a sua cafonice) deixou clara sua indignação com o fato de que a indigitada Srta. Izilda tirava as dentaduras para levar a cabo seu mister, o que a deixava despida de toda dignidade. Vambora, vambora / Olha a hora, vambora, vambora... |
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