Tema 020 - AMORES ILÍCITOS
BIOGRAFIA
PEQUENOS ESTUPROS
Fred Leal

Manolo era o perfil do "latin lover". Chileno de corpo esguio, bigode fino e sorriso atrevido, era ídolo na faculdade de filosofia. Não por sua beleza, que nem era tanta, mas por sua peculiaridade. Ele definitivamente era uma figura diferente. Um entre os tantos pseudo-socialistas do local, abandonava todas suas convicções se fosse preciso para conquistar uma caloura. Afinal, ele sabia bem que elas eram mais enérgicas e opinionadas. E que qualquer forma de apoio vinda de um veterano seria bem-vinda.

Fora isso, ainda era uma pessoa engraçada, um arquétipo do pateta. Falava e fazia as coisas mais esdrúxulas nos momentos mais impróprios. E tudo com um forçadíssimo sotaque espanhol. Forçado, sim, pois ele praticamente fora criado no Brasil. Não perdia uma festinha no campus, e qualquer mesa de bar era motivo suficiente para que erguesse a voz e citasse Nietzsche ou Sartre, mesmo que não tivesse nada a ver com o assunto discutido.

Uma de suas principais companheiras era Clara. Clara era uma pessoa solitária e introvertida, e encontrava em Manolo a companhia ideal. Não gostava muito de ser reparada - tinha repulsa, na verdade - e o amigo fazia um bom trabalho em deixa-la em segundo plano. Seus momentos de diversão se resumiam à rir de Manolo, encher e a cara e transar com desconhecidos - nessa ordem. Como Manolo gostava de dizer, "pequenos estupros", já que ela costumava acordar no dia seguinte sem saber com quem ou onde esteve, pedindo para que o amigo a buscasse nos buracos mais perigosos de São Paulo.

Foi numa quarta-feira que Manolo e Clara se encontraram no bar em frente ao prédio principal da faculdade. Sentaram e começaram a conversar, e à medida que o tempo ia passando, mais pessoas se juntavam em torno da mesa para ouvir as histórias do chileno e suas aventuras sexuais numa estação de esqui nos Andes.

Já era tarde da noite, e restavam na mesa apenas Manolo e Aparecida. Aparecida era uma das calouras que ele havia conquistado, ainda no começo de seu primeiro período. Desde então ela vivia obcecada pelo rapaz, não perdendo uma oportunidade de estar com Manolo. Mais algumas cervejas e risadas, e ele percebeu que Clara já tinha ido embora. Ela era assim mesmo: arrumava alguém e ia. "Pequenos estupros". Voltou pra casa despreocupado, sabia que na manhã seguinte receberia um telefonema desesperado da menina.

Mas a manhã chegou, e Clara não ligou. Passou-se toda a tarde, e nenhuma notícia de Clara ainda. À noite, antes de ir pra faculdade, Manolo ligou pra casa da menina, e a secretária eletrônica atendia a cada quatro toques. "Que merda", pensou. "Ela já deve estar na faculdade". E Manolo foi para lá.

Na faculdade, ninguém sabia dela. Conversando com uns amigos, Manolo resolveu que ela devia ter arrumado um cara legal - e ainda soltou um "finalmente" quando esse pensamento lhe ocorreu - e estava se divertindo. A aula passou logo e o rapaz voltou cedo pra casa.

No dia seguinte, a mesma coisa. E assim, até o final da semana, quando na sexta-feira, no meio de uma sonolenta aula de sociologia, seu celular tocou. Era o número de Clara. O rapaz pediu licença enquanto saía de sala, já atendendo a ligação.

- Alô? Clara?

- Manolo! Me ajuda! Eu to perdida! To trancada! O cara é louco!

- Peraí, como assim? Onde você ta? Onde você passou esses dias todos?

- Um maluco, um pervertido... A gente veio pra casa dele, eu desmaiei no carro. Não lembro de mais nada. To trancada aqui desde quarta! Ele tinha escondido meu celular! Ainda não vi a cara do sujeito!

- Clara, liga pra polícia! Eu não posso fazer nada sem saber onde você está!

- Ele ta chegando, Manolo! Ta abrindo a porta! Me ajuda! Me ajuda!

O telefone foi desligado de supetão. Os últimos gritos de Clara foram abafados por uma voz que gritava "Piranha! Me dá aqui esse telefone!" Manolo não sabia o que fazer. Desceu correndo as escadas, foi até o estacionamento e saiu em disparada com seu Escort conversível amarelo, cantando pneus, sem sequer deixar o dinheiro da cerveja pro flanelinha.

Ele corria, e não sabia para onde ir. Parou na primeira delegacia de polícia que encontrou. Estacionou na porta, de qualquer maneira, subiu correndo os 5 degraus da entrada e começou a se explicar para o soldado da recepção. O rapaz, muito solícito, explicou que poderia fazer um boletim de ocorrência, e só. Não haviam pistas suficientes para iniciar um processo de investigação.

Manolo estava só, e Clara dependia dele. Tudo que ele sabia é que ela saiu com um cara que conheceu no bar da faculdade e estava trancafiada em seu apartamento. Resolveu fazer como nos filmes que passavam na tv de madrugada, e voltou para a "cena do crime". Ia de mesa em mesa, perguntando se alguém sabia algo sobre a menina. Se ela havia sido vista, com quem ela tinha saído na última quarta, qualquer coisa que lhe desse algo por onde começar.

Então Manolo encontrou Aparecida. Foi conversar com ela, e sabia que ela seria solícita. Aparecida disse que havia visto Clara sair sim, e com um veterano de Direito que ela conhecia através de um amigo comum. Manolo puxou Aparecida de sua mesa e correu com ela para seu Escort, sacando o celular e ligando para o amigo da menina. Logo, os dois estavam a caminho de uma das regiões mais perigosas da cidade.

E eles rodaram por horas à fio. Pararam em bares, perguntaram passantes. Subitamente, em uma rua escura, avistaram uma mulher correndo. Manolo acreditou em sua sorte, e acelerou. O carro se aproximou, e ele viu: era Clara. Encostou, gritando seu nome, enquanto ela continuava a correr, desesperada. Quando ela viu Manolo e seu inconfundível Escort conversível amarelo, seguiu em sua direção. Seus olhos brilhavam num misto de temor e satisfação, e com um só giro, ela subiu no carro, se juntando ao rapaz e à Aparecida.

Manolo voltou a acelerar e, num gesto impensado, Clara puxou o rapaz para junto de si e o beijou. Um longo beijo, de soltar fagulhas pelos ares. Enquanto Clara segurava gentilmente o pescoço do amigo e o beijava ardentemente, Aparecida enrubescia. Seus olhos injetavam-se de vermelho-sangue, sua respiração ofegava. Repentinamente, a menina sentiu seus braços formigarem e se enrijecerem. Num piscar de olhos, suas mãos se atiraram às costas de Clara.

Um empurrão, e Clara foi atirada do conversível de Manolo. Caiu com sua cabeça de encontro à calçada. Sob seu rosto, se formava uma poça de sangue, que escurecia paulatinamente ao se misturar com o esgoto que corria a céu aberto. Manolo freou bruscamente. Era tarde demais.

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