Era uma velha pequenina,
de espírito cândido. Em suas mãos circulavam, nos fins-de-semana de
solidão e nos dias cinzas, tristes, os livros clássicos. Ela os relia
com a mesma satisfação da primeira vez. Descobria uma personagem nova,
que antes era mera coadjuvante, apagada e sem cheiro, sem eira ou beira,
e a saudava com um sorriso amigável. Descobria também outras nuances,
outros contornos. Embalava-se horas e horas na mal tratada cadeira de
balanço, os olhos apertados em busca da frases eternas. Até que uma
vez, sentada na varanda acompanhando o lento crepúsculo de um dia que
fora lindo, resolveu criar a política literária. E assim
foi.
Escolheu os candidatos: Dom Quixote (o de sua preferência e agrado),
Hamlet, Otelo (um negro tinha que ter), Brás Cubas (ah, o emplastro,
santo remédio), Gulliver (político rodado, experiente),
Alice (a mulher) e Baleia (a cadelinha, representante do povo). Criou
slogans bobos: ser ou não ser presidente?, vote Alice, a mulher maravilha!,
Gulliver, presidente pra mais de metro. Promessas vãs: abaixo a fogueira
de livros, viva Amadis de Gaula, todos terão o direito de escrever suas
memórias de trás para frente (em respeito aos vermes, meus cabos eleitorais),
proibirei a ação dos invejosos, em especial dos Iagos malvados. Deu
certo. Reuniu os netos, distribuiu-lhes pequenas biografias escritas
em linguagem infantil e cada um escolheu seu candidato.
Decidiu: ela mesmo seria Quixote (a fraude, pois não).
Uma semana depois, tudo certo. Eliana, onze anos, interpretou Alice,
e não chegou a 10% do eleitorado (o resto da família). O cão da casa,
Faísca, mergulhou no mundo de Baleia, e ao fim da campanha estava todo
desmilingüido, o coitado: ganhou 3% dos votos, por compaixão dos eleitores
mais sensíveis. Lucas, o caçula, virou um Hamlet vigoroso: andava pra
cima e pra baixo com o crânio de um passarinho morto na mão e um lençol
do Mickey enrolado no pescoço, falando sê ou não sê?. Foi
um fenômeno eleitoral: 15%. Brás Cubas, que era o neto Pedro, andava
vendendo balas de goma na vizinhança e dizia que curava tudo, até mesmo
espirro. Já a velha, Dom Quixote até a medula, ia eufórica pela semana
adentro, incentivando a molecada dizendo que a eleição estava ganha
a seu favor: não haveria feiticeiro que a barrasse da presidência.
Totalizada a apuração, ganhou a velha. Não houve choro nem lamentação:
a criançada pulava exultante, dava parabéns a avó, pois ela merecia.
Então a velha, que fizera aquilo como brincadeira para passar o tempo,
emitiu o primeiro decreto de seu governo de mentirinha: às seis horas
da tarde, após o colégio, ela faria a leitura de Cervantes, no jardim,
ao pôr-do-sol. Dessa maneira, o povo saberia como agir e ficaria atento
às venturas e desventuras do presidente e sua comitiva.
Assim, durante dois meses, a velha leu as oitocentas páginas do Engenhoso
Fidalgo para os netos. Depois, voltou à cadeira de balanço e lá morreu
(Ulisses, de Joyce, no regaço) de um tédio profundo.