Está chovendo desde ontem. O tempo sugere cobertas, lareira, um cálice de Porto. Tendo tudo isto à mão, ligo a TV e me esqueço do tempo com a deliciosa comédia Se meu apartamento falasse. O mocinho que gosta da mocinha que gosta do patrão do mocinho que não pode gostar da mocinha. Ela tenta o suicídio, ele cuida dela e os dois se apaixonam.

Morrer por amor. Em vários momentos da minha vida eu achei que para se escrever um poema era preciso estar sofrendo tanto, que o escrito seria aquilo que transbordasse. Morrer por amor é assunto dos grandes dramas. A dor do amante, a dor do pai que perde o filho, a dor do filho diante do espectro do pai, de todas as dores a literatura é feita. Mas as palavras que descrevem a dor, não são a dor. São palavras.

Poderia ficar aqui durante horas falando a respeito de palavras. Mas elas sozinhas não são nada, quero dizer, são um amontoado de sinais que juntamente com um significado emocional, sugerem alguma coisa. Essa coisa pode ser dor. Falarei de qual dor? Da dor do mundo? Da miséria? Da minha dor?

Abrir a minha dor é abrir um cômodo trancado de uma grande casa para fazer a faxina. Um cômodo cheio de livros, discos, caixas de todos os tamanhos contendo objetos os mais variados, brinquedos quebrados e toda sorte de coisas que se guardam num cômodo privado de cor, de ares, de sons. Pegar qualquer pedacinho que seja, e eu falarei de mim. Então deixo tudo como está.

Usarei as palavras em cenários alegres e coloridos. Descreverei um vasto jardim gramado por onde correm as brisas de outono em suas vestes translúcidas, colocarei ao fundo o céu azul do paisagismo inglês, música para encantar os amantes. Mas não me colocarei em cena e a ausência será a minha dor. Mesmo tendo a memória da tristeza, prefiro escrever sobre o amor.

A chuva continua imperturbável. O fogo está aceso, o Porto servido e ao meu lado, totalmente desfrutável, a companhia de minha gatinha.

Como tudo isto combina.