LABIRINTO
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Luís
Valise
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Só por isso? Teria sido só por isso? Ao propor que ambos abandonassem famílias, filhos, amarras, e partissem para aonde pudessem andar de mãos dadas pelas ruas ela buscava o que julgara ser melhor para os dois. Lembrava-se que enquanto falava na mesa de fundos do restaurante vazio àquela hora, ele rabiscava num guardanapo, cabeça meneando as dúvidas que a proposta jogava sobre a mesa. Largar tudo? Mulher, filhos, casa, emprego? Viver onde pudessem andar de mãos dadas? Por onde ela andava? Porque não descia à Terra, pés no chão, deixasse os sonhos pros vadios sem eira nem beira, porque não acordava? Ela também tinha marido, filhos, casa, tinha a ele, porque querer além? Mania de sonhar de olhos abertos, se bem que outros olhos tão lindos ainda não vira e nem queria perder, pensasse nas coisas como eram, parasse de ouvir chicos, caetanos, vinicius, tons e sabe-se mais lá quem, pra esses artistas tudo sempre é muito fácil, casa e separa sabe-se lá quantas vezes, cada bimbada uma música (ou seria o contrário?), conselhos no cabeleireiro, filosofadas de manicures! Ele, Heitor, tinha uma mulher que não era de músico, tinha filhos que não eram de artista, tinha um emprego que era de responsabilidade. Como largar tudo assim e ir viver de mãos dadas? Pois a proposta dele era melhor: que mantivessem tudo o que já tinham e ainda se mantivessem aos dois! Pois não podiam ter as mãos dadas sob a mesa como agora? Não podiam beijar-se com os olhos como agora? Lá vinha ela com a mesma cantilena, queria viver um grande amor, era tudo com o que sempre sonhara, andar de mãos dadas sob a chuva, poder chegar em casa com a roupa molhada sem inventar desculpas, secar-se em frente à lareira, ser iluminada pela luz do fogo da lareira, vê-lo girar nas mãos a taça com conhaque perto da lareira, e depois fazer um fondue para ser comido ao lado da janela vendo a chuva molhar a noite silenciosa e amiga. Ele ouvia tudo com um sorriso giocondo. Cristo!, lareira no Rio de Janeiro, coisa de quem ganha na loteria esportiva, ela que não se revelasse brega depois de mostrar o livro do Camus, depois de cantarolar Joplin, depois de brincar com o kama-sutra. Não, decerto as ruas e os passeios de mãos dadas não seriam no Rio, ela devia estar pensando em Quebéc, não deixava por menos. Ela, ele e Nova Iorque a uma hora e meia de vôo. Ela tinha pensado em tudo, do outro lado da mesa uma criança com o rosto iluminado pelo presente da imaginação.Olha, não que eu não quisesse, tua idéia me encanta, tua coragem me assusta, podemos ir preparando a coisa aos poucos, temos tempo, enquanto isso deixa-me segurar tuas mãos aqui sob a mesa, agora, ninguém está vendo, olha no fundo dos meus olhos, meu Deus, que olhos tão lindos, me ama em Quebéc! Quando o calor do sol começava a ficar forte demais, a enfermeira empurrou a cadeira de rodas mais para a sombra e afastou-se. A mão descarnada, branca, trêmula apalpou o peito magro, buscou o sutiã inútil e de dentro tirou um papel amarelecido. O guardanapo de tão velho quase se desmanchava. Venceu a dor da artrite, escondeu-se da esclerose, desdobrou-o com cuidado, e pela undécima vez naquele dia decifrou os rabiscos: fuga, chuva, Quebéc, doida. |
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