A
MENTIRA QUE NÃO QUER CALAR
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Larissa
Schons
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Acordo mais cedo do que de costume. Hoje é o dia da minha consulta. Três longos meses de espera para reencontrá-lo novamente. Estou aflita! Em uma hora vou ter que fazer tudo que não tive coragem de fazer nesses três últimos meses. Não sei se a verdade que está aqui entalada na minha garganta vai tomar corpo e alma, ou se a mentira do dia-a-dia vai novamente me dominar. Nos meus sonhos a verdade tem uma força tão grande que eu chego a acordar sentido que ele está do meu lado, pertinho de mim, me abraçando, me beijando. Que força estranha é essa que me consome de tal forma? Porque depois desses sonhos quando acordo não me reconheço mais? Minto para mim mesma! Me acostumei a mentir. As pessoas me conhecem como a psicóloga competente, a mulher forte e determinada, que não tem medo de nada, que resolve todos os problemas das pessoas, mas e os meus problemas? Nem eu mesma me reconheço! Porque tenho que mentir tanto assim? Dizer que estou feliz, que o admiro como amigo, como profissional, putz, tá legal! E porque não posso dizer que o admiro como homem? Como o meu homem! Porque? Hoje eu decidi, basta! Não posso mais controlar meus sentimentos. Porque tenho que ser tão fria quando o vejo? Porque mentir dessa forma? Porque me torturar, se sou quente, insaciável, feminina, mulher. É isso, é bem isso, sou mulher, feminina, vou me mostrar, vou lhe mostrar quem eu realmente sou! Pego minha minissaia branca, meu top vermelho, minhas argolas, meu salto alto, batom, blush, gloss. Não interessa minha roupa, minha situação social, minha ética. Hoje eu não quero saber, hoje eu vou pra guerra e vou vencer! Desço no elevador encontro minha vizinha que já vai logo perguntando se estou bem, se vou trabalhar desse jeito, apontando para minha minissaia. Hipócrita! Respondo na maior cara-de-pau que o dia está lindo, que estou morta de calor, e que vou ao dentista. Ela diz que eu realmente devo estar morrendo de calor, que nunca me viu assim, tão exposta, e que estou suando frio. É impressionante como nessas horas eu não consigo mentir nem para uma fofoqueira de plantão! Digo que estou atrasada e deixo a vizinha ali sozinha, falando com as paredes. Dane-se! Depois de três meses de espera, não vai ser uma vizinha metida que vai me inibir. Percebo os olhares dos homens na rua. Só espero que ele me olhe da mesma forma que aquele cafajeste olha pra mim. Chego no consultório, abro a porta, e dou de cara com ele. Parece coincidência! Ele me olha de cima pra baixo, e eu de baixo pra cima. Percebo que ele não tira os olhos das minhas pernas. Pequenos segundos que parecem horas sem fim. Começo a ficar rubra, acho que ele percebeu, vem ao meu encontro, me dá um caloroso abraço e três beijinhos, seriam dois, eu é que fiz questão de beijá-lo três vezes e fazer aquela brincadeirinha do peraí são três pra casar. Educadíssimo ele obedece e sorri. Eu fico sorrindo é de nervosa. Nessa hora já estou em pânico. Impressionante como não consigo fingir quando preciso. Mas impressionante ainda é como ele faz questão de me olhar fulminantemente e me deixar ainda mais sem graça. Ele me convida para entrar. Só agora percebo que a secretária e uma paciente não paravam de olhar para nós dois. Não fiz nada de errado! Sou uma mulher apaixonada, tenho o direito de fazer da minha vida o que eu bem quiser. E hoje eu quero, eu quero ele! Sento-me na cadeira, com o coração a mil. Ele, simpático como sempre, me pergunta como foram as minhas férias. Se viajei. Se fiz tudo que tinha planejado. Essas coisinhas. Tenho vontade de dizer que nesse tempo todo a única coisa que fiz foi pensar nele. Pensar nas coisas que há tempos quero dizer, mas que não tenho coragem. Simplesmente respondo que fui para a praia. Digo que conheci um balneário no sul do Brasil, um lugar sossegado e de natureza espetacular. Ele olha para as minhas pernas, para o meu umbigo e por fim para o meu rosto e diz que estou bronzeadíssima. Eu brinco dizendo que no balneário me chamavam de neguinha pra lá, neguinha pra cá, mas que eu não conseguia relacionar o dito apelido com a minha pessoa, afinal durante o resto do ano me chamam de branquinha, e como ia me acostumar assim com o oposto do que eu sou. Ele ri. A conversa fica agradável. Ele começa a falar sobre a sua vida, sobre esses meses de distância, diz que na verdade não fez nada de novo, que ficou esses meses todo trabalhando sem parar. Ele diz que esse é o seu trabalho, que ele ama o que faz. E eu fico pensando que daria tudo para ser a "senhora odontologia". Acordar, dormir, ficar sempre ali com ele, grudada, 24 horas no seu pensamento e no seu coração. Quem dera! Sinto que chegou a hora de me declarar. Vou dizer tudo. Isso meu bem, continue me flertando, que isso me dá mais força, já estou em transe. Mas parece que a tal secretária sente que o clima está para o meu lado e aparece na porta, de repente. Dirige-se a ele e diz que a sua esposa está na linha querendo falar com ele. Essa frase entra nos meus ouvidos como uma bomba, e fica lá martelando, a sua esposa, sua esposa, sua esposa. Saio do transe. Agora sou eu de novo, a farsa em pessoa. Não falo mais nada. Ajo como se fosse mais uma de suas pacientes. Coisa de rotina. Ele percebe a minha mudança brusca, mas não diz nada. Uma esposa e uma secretária foram às causas do meu fracasso. Limpeza feita. Saio contrariada do consultório. Eu estava tão perto. Ara! O costume, a minha ética, o meu bom senso. Sou tão correta. Sou tão careta. Queria ser mais louca. Louca o suficiente para encarar toda essa mentira e dizer, dessa vez cale-se, você vai ter que me engolir, mas pelo contrário, ela é mais forte e não quer calar. Eu é que saio caladinha, desconsolada, vencida. Vou ao barzinho encontrar meu sapo. Mais uma vez beijo-lhe imaginando que aquela boca que me devora não é a dele, e sim a do meu dentista. Finjo estar feliz e saciada com seu beijo. Compro uma coca-cola e entre uma bolha e outra do canudinho imagino a secretária sendo brutalmente enforcada com o fio do telefone. É! Essa sim, uma adorável mentira! |
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