A
MÁQUINA DE LAVAR MENTIRAS
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Eduardo
Loureiro Jr
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Não custava nada arriscar. Afinal era uma promoção conjunta de duas das maiores empresas do país. E ele já tinha passado pela primeira peneirada. Sua resposta foi uma das cinco melhores para a pergunta "o que só Omo e Brastemp podem lavar por você?" Teve inspiração instantânea: uma mentira deslavada. A inspiração veio da ex-mulher que o enganou durante anos e que o abandonou logo agora que ele, um publicitário de nível superior com 20 anos de carreira, estava desempregado. Duas semanas depois de enviar o cupom com a resposta recebeu uma carta de parabéns com instruções para a fase final do concurso: executar a lavagem. Ligou para o 0800: "Como assim executar a lavagem?" A moça de voz padronizada, do outro lado da linha, respondeu: "Lavando. Uma concorrente, por exemplo, decidiu lavar uma cueca de seu filho adolescente manchada por três anos de polução noturna. Outro escolheu lavar um colarinho manchado de batom da amante espanhola. Qual o caso do senhor?" Teve vergonha de dizer "uma mentira deslavada", disse qualquer coisa, que ia lavar uma meia velha, uma camisa encardida. A moça não botou fé, aquilo era muito comum, não sabia nem como ele tinha passado na primeira fase, mas enfim aconselhou o óbvio: "É só botar o Omo na Brastemp, ligar e pronto." Fim da ligação. Podia dar certo, quem sabe. Ele lembrou da música que gostava de cantar para sua ex-mulher: "quero a sua mão no meu cabelo que é pra desembaraçar meu pensamento." Se a mão daquela mentirosa safada podia desembaraçar a genialidade de seu pensamento, por que o melhor sabão em pó e a melhor máquina de lavar não poderiam resolver o problema de uma mentira deslavada. Sim, porque para ele a mentira era uma espécie de sujo na verdade, e que só se via em contraste com a verdade. Não havia mentira lisa, apenas mentira cabeluda, não havia mentira limpa, apenas mentira deslavada. Difícil era separar uma coisa da outra, pois se até uma brincadeira tem lá seu fundo de verdade, não é menos certo que toda verdade tem seu encardido de mentira. Ia arriscar. Era sua chance de ganhar um supermercado quinzenal vitalício... e de dar o troco na ex-mulher, que sempre o julgara um imprestável doméstico, "incapaz de lavar as próprias roupas", como ela dizia. Pois sim, ganharia o concurso e se vingaria ao mesmo tempo. Ligou para ex-mulher imediatamente, simulando um ataque do coração, e deixou o telefone ainda ligado cair no chão. Quando ela chegou, ele já tinha armado tudo: o lençol branco na máquina de lavar, ainda imaculado porque nos últimos meses de casamento ela sempre arranjava uma desculpa para não fazerem amor; a porta da cozinha entreaberta; e na área de serviço o corpo dele curvado sobre a máquina. Ela se aproximou apavorada com a intenção de salvá-lo. Quando tentou erguê-lo, ele lhe aplicou um golpe com uma das mãos. Com a outra abriu a tampa da máquina de lavar e forçou a cabeça da ex-mulher para dentro. Em seguida apertou o botão conforme indicava o manual e a máquina retomou a centrifugação, tingindo progressivamente o lençol de um vermelho escuro, cabeludo e deslavado. Ele ganhou o concurso por decisão unânime do júri. De quinze em quinze dias o supermercado manda suas compras para uma cela especial no distrito policial. A frase "quero a sua mão no meu cabelo que é pra desembaraçar meu pensamento", usada no texto, é um trecho de uma música de Guilherme Arantes. |
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