Tema 015 - MENTIRA
BIOGRAFIA
É MENTIRA
Ana Peluso

Nunca lhe ocorrera dizer o contrário. Para ela, apenas mais uma idosa, como se autoproclamava, aos sessenta e três anos, dizer “É mentira!” já se tornara comum. E virara gozação na mesa de tranca, do grupo de terceira idade do grêmio recreativo Santa Edwiges.

Toda quarta-feira é a mesma coisa. Dona Terezinha senta-se à mesa, junto às companheiras de sempre: dona Marta, dona Cleide Beatriz (essa fazia questão de ser chamada pelo pré-nome completo) e dona Rita. E a Zuzinha, como é conhecida dona Terezinha desde os tempos em que Clark Gable embalou seus sonhos, se defende, ato contínuo ao descarte:

- É mentira! Nunca roubo na tranca! Apenas no buraco, e isso quando jogo com o Antenor!

Antenor, o marido devotado de Zuzinha é o próprio anjo encarnado, como dizem as amigas de mesa de jogo. Ele leva e busca a esposa, todas as quartas-feiras, no mesmo horário, e tem sempre um sorriso complacente para com a personalidade apimentada da mulher.

Zuzinha é mesmo de arder qualquer pessoa! Sua fama de mentirosa oficiosa, já lhe custara a perda de duas colaboradoras do lar. A primeira Luzia, não agüentou a cara de pau de Zuzinha e pediu as contas no dia do aniversário de Marco Antônio, o filho do meio de dona Terezinha. Luzia não acreditava que a patroa pudesse ir tão longe, desmentindo-a frente ao padeiro que estava à porta, entregando os pães para os sanduíches de carne fria que seriam servidos mais tarde.

- Era para comprar cinqüenta pãezinhos, Luzia!

- A senhora está lelé, dona Zuzinha? A senhora me pediu que fizesse a encomenda de trinta pãezinhos na padaria de seu Onofre...

- É mentira! Pedi cinqüenta pãezinhos! Ora, imagina se sou mulher de fazer economia com comida?

Seu Onofre, com a cesta de pães, esses cuidadosamente embalados em papel manteiga, olhava de uma para a outra, tentando entender se deveria voltar à padaria e providenciar mais pães, ou se ficava até o final do bate boca, para saber quem estava com a razão. Já sabia da fama de dona Terezinha, mas nunca tinha tido nenhuma experiência pessoal com a falaz senhora.

No final, da altercação, uma dona Zuzinha triunfante, via seu Onofre despejar mais vinte pãezinhos dentro da bacia da cozinha e no final do dia, em cima da mesa, uma carta malemá escrita, onde Luzia pedia, sumariamente, sua demissão.

A segunda colaboradora que dona Terezinha perdeu, ou como ela costuma dizer, “Fugiu da raia!”, foi Dita. Anterior à Luzia, Dita estava com a família, desde a mocidade de Antenor. Viera da casa da sogra de Zuzinha, como um presente, pois Antenor, só comia as comidas preparadas por Dita.

Benedita era uma mulher de riso fácil, e no começo não se importava muito com as mentiras de dona Terezinha. Era a fralda do Carlos Eduardo que ela guardara errado, quando sabia que a patroa mexia em todos os armários, após guardar as roupas passadas. Era a amiga que telefonava todos os dias e nunca obtinha resposta. Culpa da Dita que não passava os recados. Mas passava.

Dita não se incomodava, porque via na patroa a necessidade de maturar a personalidade de menina que ainda carregava, devido aos mimos que os pais lhe deram. Mas o tempo foi passando e nada de Zuzinha se emendar. A gota d’água fora o desmentido de dona Terezinha em frente aos antigos patrões, quando perguntada sobre o desempenho de Dita, após vinte anos prestando serviços à mesma família.

- Ora, ora! Dita é lerda! Leva mais de três horas só para passar a roupa do dia!

Isso era o fim! Dita adentrou a sala, pela primeira vez sem ser convocada e proclamou aos ouvidos presentes:

- Eu passo roupa em tempo recorde! Sempre fui boa pra passar roupa e rápida como ninguém! Não acredito que a senhora esteja falando isso. Na semana passada mesmo elogiou meu desempenho e rapidez! A senhora está de brincadeiras comigo, né mesmo? – e abriu um sorriso de enorme esperança de que a patroa estivesse a lhe caçoar.

- É mentira! Nunca disse isso a você! Você deve estar sonhando! – bradou Zuzinha, que quando usava a famosa frase, aumentava consideravelmente o volume da voz.

Dita só não caiu no chão, porque foi amparada pelos antigos patrões, que a levaram de volta para o também antigo emprego, recomendando a Antenor que levasse a mulher para fazer um tratamento.

- Isso tem de parar, meu filho. A Tereza já é mulher feita! Não pode ficar mentindo e desmentindo as pessoas por aí. Qualquer hora dessas, a coisa vai ficar feia pro lado dela.

- Eu sei pai, eu sei... Vou leva-la ao doutor Geraldo.

- Mas que doutor Geraldo, que nada! Isso é caso para psiquiatra!

- É mentira! – ainda ouviram Zuzinha gritar lá de dentro da casa. – Psiquiatra é médico pra louco e eu não sou louca.

E realmente não era. Desde que deixassem ela mentir à vontade, pois quando alguém a contrariava, ela ligava o volume da voz e praguejava sempre a mesma frase, já conhecida.

Os anos se passaram e Zuzinha em nada modificou. A não ser nos traços cujos vincos mostravam a idade, fato que deixava todos sem entendimento do porque dela nunca contestar a idade, já que mentir a respeito da idade, sim, era aceitável.

Mas dona Terezinha não mentia não! Tinha sessenta e três anos e adorava contar esse fato a todos, na esperança de ser deixada em paz com suas pequenas mentirinhas, em respeito à idade que ostentava.

- Você não tem vergonha na cara, né Zuzinha? Roubando a própria parceira de Tranca?

- É mentira! Não roubei, não. Apenas descartei meu às de copas.

- Isso, nós sabemos – apartou Cleide Beatriz – mas gostaríamos de entender, como seu às de copas se transportou do monte até suas mãos?

- É mentira! Ele não se transportou! Eu o peguei na última compra.

- Mas você não comprou. Bateu direto pro morto! – quem dava opinião agora era dona Rita.

- É mentira! Comprei sim!

E a discussão estava formada. Pela primeira vez em três anos de encontros vespertinos, onde a tranca, as fofocas e as mentiras de Zuzinha eram vividas pelas quatro companheiras entre risos e palavras de deixa-disso, deixava de ser um mero deixa-disso e virava uma tremenda discussão!

Cleide Beatriz levantou-se da cadeira com tanta força que essa foi arremessada longe. Rita também mostrava que já fora boa de briga e ameaçava meter um soco bem no meio do nariz de Zuzinha, e a eternamente calma, Marta, estava vermelha de ódio, pois com o início da discussão as cartas estavam se misturando e ela, que estava para ganhar o jogo em parceria com Zuzinha, via seu sonho de vencedora da tarde ir para as cucuias.

O palavrório fez-se ouvido por todos presentes na sala de recreação do Núcleo de Terceira Idade Santa Edwiges, e Zuzinha se encontrava em delírio, gritando: É mentira! É mentira!

Não ouve outro jeito. Chamaram o seu Antenor.

E eis que chega o marido de Zuzinha com o mesmo olhar complacente de sempre, o que aumentava a ira das três amigas, e pegando dona Terezinha pelo braço, praticamente a escoltou porta afora, sob os olhares raivosos de todos os membros do núcleo.

Na hora do jantar, ouvia-se Zuzinha murmurando:

- É mentira! É mentira! Eu comprei o ás do monte. Eu juro... É mentira!

- Zuzinha, querida, deixe isso pra lá! Amanhã ou depois, a Cleide Beatriz telefona pra você e tudo volta ao normal.

- Antenor, sua anta, você não está entendendo! Dessa vez, eu juro que é mentira delas. Eu comprei o ás do monte. De onde mais poderia eu ter comprado um ás de copas?

- Ué sei lá... Você pode ter comprado de algum traficante de ases de copas!...

- Antenor, você não está acreditando em mim... Eu juro!

- Ta bom Zuzinha! Ta bom! É mentira delas, eu acredito! Você vai ver. Amanhã a Cleide Beatriz telefona e vocês fazem as pazes!

- Quero só ver... – e Zuzinha cruzou os braços sobre a mesa, apoiando a cabeça sobre eles, como fazia quando era criança e não era compreendida.

Mas a semana passou e nada de Cleide Beatriz telefonar, telegrafar, aparecer, ou qualquer outro gesto que demonstrasse uma possível reabilitação da amizade. E para piorar, nem Marta, nem Rita davam sinal de vida.

Passou mais um mês e Zuzinha já dava sinais de que estava infinita e irremediavelmente deprimida pela ausência das amigas e do Núcleo Santa Edwiges, pois desde o ocorrido, não dera mais as caras por lá.

Zuzinha adoeceu. Ficou de cama com febre, e só expelia um som de pela boca acostumada a mentir:

- É mentira! Eu comprei o às de copas do monte... Eu juro!

Mas não havia como provar. Pois o ato fora circunstancial e não havia como mostrar a cena a ninguém. Ela iria mentir naquele dia do bafafá, sabia disso, mas na hora do bate final. Sempre fazia isso. Batia sem canastra feita e jurava para todo mundo que não havia percebido que o jogo estava incompleto nas mãos. Dizia que era coisa da idade. Afinal sessenta e três anos era idade de uma senhora “praticamente” com a memória afetada, distração de pessoa idosa...

Ao que era interpelada pelas companheiras:

- Deixa disso Zuzinha! E desde quando sessenta e três é idade de velho? Velhice começa aos noventa e três, o que significa que você ainda tem trinta anos para envelhecer!

Sempre fazia isso e sempre dava certo, mas o ás ela tinha comprado. Era verdade, porém nunca ninguém soube, e quando dona Terezinha passou dessa para melhor, dez anos depois, as amigas não foram ao enterro não.

- Deve ser mentira dela, balbuciou Cleide Beatriz para o neto mais novo.

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