O
AMOR QUE VEIO DA FOLHA
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Eduardo
Loureiro Jr
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A última vez que tinha recebido
um bilhete anônimo foi às vésperas das festas juninas, quando ainda fazia
a 1ª série: "Quer ser meu par?", dizia o bilhete, "encontro
você na quadrilha". Ele se empolgou. Devia ser a linda menina de
cabelos ruivos na altura dos ombros e pequenas sardas na maçã do rosto.
No dia da quadrilha, a decepção: era uma menininha balofa e de óculos,
inaceitável para o seu exigente padrão estético da época.
E agora recebia outro bilhete... "Folha", era tudo que estava escrito num papel pautado, cor-de-rosa, com coraçõezinhos de todos os tamanhos nas margens. "Para bom entendedor, meia palavra basta", dizia ele para si mesmo, tomando o bilhete como um desafio a ser decifrado. O porteiro, que lhe entregou o bilhete, não soube dizer quem o havia deixado ali. "Quando cheguei já estava no escaninho, senhor Gustavo. Deve ter sido entregue ao porteiro do turno da noite." A letra era um garrancho só, e ele pensou que sua admiradora não era uma qualquer, que tinha ido além do habitual recorte de letras de jornal, que preferira ocultar sua caligrafia com aqueles rabiscos simpáticos e infantis. Enquanto caminhava os sete usuais quarteirões matinais até a banca de revistas, ia sismando, se perguntando o que ela, sua admiradora, quisera dizer com "Folha". Não encontrou resposta imediata, e ficou satisfeito: "Enfim uma mulher à minha altura", pensou, "alguém misteriosa, profunda, enigmática". Quando o jornaleiro se antecipou e lhe entregou o jornal, "O Estadão, certo, senhor?", ele fez que sim com a cabeça, absorto no mistério do bilhete, mas atingido por uma súbita lâmpada do Professor Pardal, reagiu: "Não, a Folha!" Sim, era isso! A mulher desconhecida sabia de sua solidão, de seus hábitos, de sua curta caminhada matinal, do jornal que comprava... E se escreveu "Folha" e não "Estadão" no bilhete, é porque estava dando sinais claros de que vinha para mudar sua vida, que ao invés da frieza burocrática do "estado", encheria sua vida com o frescor natural e romântico da "folha". A suspeira se confirmou no trajeto de volta. Na calçada onde dava sombra, ele encontrou uma folha no chão. Mas não uma folha qualquer de uma árvore qualquer, era uma folha brilhante, de um verde quase limão, capaz de brilhar no escuro. E mais: a folha era ondulada, tinha o formato de lábios carnudos se entreabrindo para um beijo. Colheu a folha no chão, já completamente excitado e apaixonado pela mulher que lhe enviou o bilhete anônimo. Ela sabia exatamente por onde ele andava, e como ele andava, sempre com os olhos no chão, como se procurando alguma coisa, cabisbaixo mas com o olhar atento. Todas as suas namoradas lhe criticavam isso, mas sua admiradora secreta reconhecia e presenteava até esse corriqueiro gesto. Não agüentou chegar em casa, sentou na calçada mesmo, na calçada em que os pés de sua amada haviam pisado, no cimento em que ela havia depositado gentimente aquela folha afrodisíaca, na sombra em que ela talvez o assistisse, escondida em alguma guarita de prédio, em algum carro, disfarçada, ou mesmo à distância, na janela de algum apartamento, com binóculos nas mãos. Sentou no chão e abriu o jornal na seção de Classificados, Classiline, Mulher procura Homem... Lá estava: "EU - morena jambo, beijo incandescente, cheiro de orvalho da manhã. C.P. 5055". Ele olhou para os lados e sorriu. Queria que sua amada ainda desconhecida percebesse sua felicidade, de onde quer que ela o estivesse observando. Em seguida se levantou de um salto. Estava revigorado. Era capaz de subir muros, trepar em árvores, fazer amor com o seu amor a noite inteira. Correu até seu prédio, queria chegar em casa e responder logo ao anúncio, sua felicidade não podia esperar. Na portaria, confusão. De longe já se ouvia a gritaria. Uma condômina segurando a filha pela mão e gritando com o porteiro. Gustavo desejou seus tapa-ouvidos, não queria que nada atrapalhasse a perfeição daquele dia, o dia em que encontrou a mulher da sua vida. Foi quando o porteiro apontou para ele, aliviado: "Pronto, senhora, aí está ele, o senhor Gustavo tem o papel". Sem muito pensar, e um pouco confuso, ele retirou o bilhete de sua amada do bolso. A menina, de mãos dadas com a mãe, reconheceu o papel: "É minha tarefa da escola, mãe, a que eu guardei na caixinha do correio." A mãe estendeu a mão, tomou o bilhete, abriu e comentou: "Muito bem, filhinha, é uma folha mesmo. Você aprende rápido! Devia ter pulado a Alfabetização." Gustavo, ao invés de decepcionado, estava encantado com a menininha de cabelos ruivos na altura dos ombros e pequenas sardas na maçã do rosto. Quando ela disse "Obrigada, moço", foi o agradecimento mais meigo que ele ouviu na vida, e decidiu que ia esperar aquela menina crescer, e com ela iria se casar, e guardaria a folha em forma de beijo para lhe dar de presente de casamento, e de agora em diante só leria a Folha, principalmente a Folhinha, todo sábado. |
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