Tema 014 - FOLHA
BIOGRAFIA
MATANDO O SALDO NEGATIVO
Beto Muniz

Fazia algum tempo que eu estava matando cachorro a grito. Não podia ver um rabo de saia que entortava o pescoço e seguia o doce balanço das ancas a caminho de qualquer lugar. Ancas em em doce balanço a beira-mar já era covardia. Não olhava para não dar vexame.

Foi quando ela apareceu. Tinha os olhos incrivelmente azuis, entretanto, o mais belo nela não eram os olhos, e sim o jeito que as mechas loiras teimavam em cair pelo rosto. Um relaxo premeditado, tapando parcialmente o brilho anil e fazendo cócegas no nariz... Que nariz! Digno de Cleópatra. Serviria como padrão internacional de perfeição. E a boca? Não me parecia ser apenas uma boca, era um festival de sensações brotando no estômago e se espalhando a galope pelo resto do meu corpo. Lábios carnudos, gulosos, sempre prontos a receber e dar beijos vermelhos. O corpo... Ah, o corpo! Uma pele bronzeada que parecia não conhecer o inverno. Incomum. Aliás, nada na garota era comum. Ela parecia viver diante de uma câmera pronta para se exibir num click eterno. Soube, muito tempo depois, que além de programas, fazia também teatro amador e desfile de lingerie. Linda! Soberanamente linda, e burra.

Era tão burra quanto uma porta de mogno. Quando digo que era burra, não quero dizer que ela confundia New York com alguma cidade da Europa, nem que ela cometia erros de conjunção, ortográficos e esse tipo de engasgos comuns de acentuação. Talvez até soubesse escrever corretamente palavras como aceno, peça, miçanga ou cacimba. Também não era burra por não saber somar dois e dois. Ela era burra por não me amar.

Eu tentei. Dei-lhe flores e bijuterias. Riu-se.

Ofereci-lhe aulas de datilografia com diploma na conclusão do curso. Convidei-a para uma sessão de cinema com direito a um guaraná e uma coxinha na saída. Riu-me.

Por fim, em puro desespero, ofereci meu amor e alguns filhos. Sorriu e recusou ao mesmo tempo em que perguntava pelo meu saldo bancário. Ofereci uma folha de extrato mensal, onde acusava que eu devia os juros do cheque especial. Gargalhou-nos.

Continuou burra até que a perdi de vista numa manhã de janeiro, tarde de fevereiro ou noite de março. Se bem me lembro, eu a esqueci quando finalmente calei meu cachorro interno. Estrangulei o cão enquanto quitava o saldo negativo na boca torta da sábia gerente do Banco. Matei em silêncio. Nenhum alarde!

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