BLOCO
DA LIMPEZA
|
|
Maurício
Cintrão
|
|
Lia um livro e nem reparei no gari que varria a sarjeta nas proximidades do meu carro. Estava estacionado perto da escola, esperando dar a hora para levar minha filha Mônica de volta para casa. Falei bom dia, ele respondeu surpreso e seguiu sua varrição, empurrando com a vassoura a herança urbana de folhas ressequidas, papéis amassados e bitucas de cigarro. Muitas das bitucas foram cigarros meus. Estou fumando demais. Preciso encontrar um jeito para controlar essa compulsão, apesar de ser um dos poucos prazeres que ainda me resta. Trabalho muito e o dinheiro continua faltando. Passear, nem pensar. Fumar talvez seja um jeito de voar, sair de mim mesmo, dessa prisão gordinha em que me meti. Namoro o bailado da fumaça do cigarro como se ela viajasse para fora do corpo de tabaco e papel. Engraçado lembrar disso estacionado, nesse calor infernal. Nem está mais na moda falar dessas viagens espirituais. Vai ver é meu o espírito pedindo férias. Ultimamente, não tenho dado muita folga a ele. Talvez seja uma desculpa tabagista. Sempre aproveito as tragadas para viajar em pensamentos, contabilizando ganhos e perdas e seguindo a vida nada esotérica de resolver os problemas do dia-a-dia do jeito que é possível. Enquanto devaneava, o gari seguiu seu empurra de lixo e o livro que eu lia ficou para depois. É uma vida sofrida a dessa gente encarregada de dar sumiço ao lixo. É trabalho mais complicado que o meu, com certeza. Será que o varredor trabalha no bloco da limpeza do sambódromo entre os desfiles de Carnaval? E uma pergunta puxa a outra. Seria uma espécie de recompensa trabalhar nesse bloco? Varrer sambando. Sambar varrendo. Não há poesia nenhuma nisso, mas eu tenho a pretensão de enxergar lirismo nessa evolução sem porta-bandeira. Um grupo de garis em formação de comissão de frente varrendo os restos da alegria da escola que já desfilou sua alegria. Adereços, sandálias rasgadas, cacos de alegorias e penas coloridas. Resquícios de um povo que conta sua história deixando pedaços pelo caminho. Os vassourões dão o ritmo e os passistas alaranjados preparam a "avenida" para o próximo deitar restos entre arquibancadas inebriadas. Deu a hora para que eu pegasse minha filha, o gari virou a esquina e acompanhou a guia pela contra-mão. Será que ele não é um passista renomado e eu fico aqui arranjando trabalho para ele no dia do desfile? Pensamento curioso. Liguei o carro e fiquei imaginando um samba enredo sobre espíritos que fogem do corpo durante o sono. Que viagem! |
|
Protegido
de acordo com a Lei dos Direitos Autorais - Não reproduza o texto
acima sem a expressa autorização do autor
|