NO
LIMITE
|
|
Marta
Rolim
|
|
A cozinha era a mesma de todo dia, um pouco encardida, de coloração esmaecida, mas o manjar cotidiano (cozendo em baforadas de vapor escaldante sobre o fogão) era novo, quiça surpreendente: lesma marinha! Porque não? Em tempos de dura recessão, proteína pura, isenta de qualquer loucura, afinal ainda não existe o mal da lesma louca, existe? A não ser que a culinária canadense tenha inventado essa moda... Lesma leve, livre de alterações transgênicas, light, pobre em calorias e gorduras. Lesma à passarinha ou, pra ficar mais chique e refinado: lesma ao champignon, lesma ao molho madeira, como queira. Levantei de manhã cedo, a hora dos pescadores e dos catadores de marisco, e fui percorrer a praia. Não precisava ter muita pressa, porque a concorrência ainda não descobrira o valor da caça, digo, o valor daqueles moluscos surfistas, peles pálidas e rugosas, que vinham encalhar e rolar na areia, antes de quererem voltar para as ondas. As tenrinhas eram todas minhas! Fui catando uma aqui, outra acolá, devolvendo as menores para o berço natural, de salmoura movediça, e ensacando as maiores e mais apetitosas para logo mais. O sol nem bem esquentara e eu já estava de volta com elas, fresquinhas e macias, prontas para o abate. Abate? peguei um garfo e espetei-o delicadamente no único pé da lustrosa criatura, um pé quase corpo inteiro. A lesma reagiu, violenta, largando uma gosma suculenta, abundante. O molho - pensei comigo - bem que esse sumo da danadinha podia contribuir para um excepcional molho. Não, mas eu que não iria matar a pobrezinha a garfadas. Pus a água para aquecer na panela e levei as lesmas para um banho prévio na pia. As anteninhas ligadas, escrutinando aquele mundo além mar: minha cozinha como uma estranha nau encalhada, encrustrada nas pedras. Suas peles úmidas e escorregadias, quase clamando um fim rápido. Resolvi não delongar muito os preparativos. A panela borbulhava, ofegante, quase furiosa sobre o fogão. Peguei a mais gordinha e fechei os olhos. Lancei-a naquele mar revolto e infernal, um que ela nunca vira, um de águas docemente cruéis. Quando abri os olhos, a ex-vivente reduzira-se a um amaranhado alaranjado e a concha jazia vazia no fundo da panela. Ah, a fome era grande, mas não pude comê-las. Aqueles nervinhos esturricados e laranjas. Acho que ainda não chegara no limite da necessidade. A gata Miquela aproveitou bem o exótico petisco. |
|
Protegido
de acordo com a Lei dos Direitos Autorais - Não reproduza o texto
acima sem a expressa autorização do autor
|