O
PINHEIRO E A ORQUESTRA
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Felipe
Lenhart
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No meu terreno há um pinheiro verde, que se perde no tempo e na memória do pessoal aqui do prédio. Digo isto porque não houve ninguém que me respondesse quem o plantou, tampouco o ano de seu nascimento. Talvez ele sempre esteve ali, quem sabe. Eis aí uma dúvida para levantar na próxima reunião entre o síndico e nós moradores. Pergunta aparentemente sem relevância, que não irá provocar debate ou trazer à tona lembranças felizes de tardes de sábado ou manhãs de domingo em que, pela caridade de uma boa mão, semeou-se, no canto do quintal, ao lado do portão dos carros, a árvore que hoje aponta para o céu como um foguete espacial. É capaz até de irritar muita gente. Fazer o quê? Aliás, além de se perder pelos anos, ela se perde também em tamanho, pois já vai alta, e quase tenho de olhar para cima a fim de enxergá-la; eu, que moro no último andar. Nas fotos que tenho da infância, tiradas em frente ao edifício, o pinheiro (que alcançava apenas o vizinho de baixo) é como carimbo de repartição pública: está em todas. Nunca deu frutos, o que seria anormal, mas vem começando a gerar vida, outro tipo de vida: instalou-se em seu topo um confortável ninho de sabiás. Fiquei admirado de acompanhar tanto empenho na construção da "fortaleza", que é como o chamo. Sob a fúria das tempestades ou o calor infernal do verão, estava eu na sacada, protegido de todas intempéries, bebendo uma cerveja e de olho no árduo trabalho da ave-mãe. Não colaborei sequer com uma palha, literalmente. Desconfio que fui um grande mau-caráter, isto sim. Meses atrás, quando os alicerces do ninho ainda eram esboços do que viriam a ser, eu ficava de vigília, câmera em punho, esperando um clique fantástico, um momento espetacular para ser congelado, uma pequena obra-prima da Mãe-Natureza. É que participava de um concurso fotográfico onde o tema era "Preserve o Meio-Ambiente". Estava ávido, confesso, por tirar o primeiro prêmio, e para isto esperava contar com a ajuda indireta dos passarinhos que estavam se instalando ali defronte. Maldade pura. Agora me arrependo, lógico, mas à época me parecia algo aceitável: um ser humano tentando vencer uma humana competição, no planeta Terra, explorando esforço alheio. De um reles passarinho, ainda por cima! Que grande canalha eu fui, não? Insensibilidade à flor da pele, se me permitem tais bobagens. O certo é que não consegui nenhum retrato digno de tróféu e não participei do concurso justamente por causa disto. Justo, justíssimo. Em compensação, tenho pelos anos vindouros (se o síndico assim o quiser e a vida assim o permitir) a possibilidade de escutar, com sorriso nos lábios e certa bondade no coração, a orquestra que se apresenta toda santa aurora, como aliás contei lá em cima. Como? Não contei? Fique sabendo, então, que é música de alta categoria, refinada tecnicamente e de um apuro estilístico que nenhuma sinfônica dessas que tem por aí jamais sonhou em alcançar. A passarinhada canta que é uma beleza. obs: já tenho horas e mais horas de fitas gravadas; interessados em lançar este vasto repertório em CD, escrever ao síndico, pois este meteu na cabeça que quer dar fim no gigante pinheiro. "Por precaução e segurança dos condôminos", diz ele, verdadeiro canalha. Já pensei cá comigo: sou contra esta barbárie, e certamente voto vencido. |
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