Tema 010 - GENGIBA
BIOGRAFIA
DO-IN SERTANEJO
Luís Valise

Ao ouvir essa frase meu pensamento desencavou a figura vista anos antes: magra, miúda, o cabelo crespo achatado sob o lenço, os pés cascudos andando ligeiro sobre o terreiro poeirento do sítio do Clóvis. Era Dona Merê, baiana de Itabuna chegada num pau-de-arara no início dos anos 60. Desembarcou na Estação do Brás com o marido Jesuíno, um maganão atarracado com cara de poucos amigos e coração mole, e três piás cor de terracota, barrigudinhos, cabelos loiros e ranho fazendo bolha na porta do nariz.

Naquela época o Clóvis tinha um caminhão velho carinhosamente chamado Anastácia, com o qual fazia carretos, mudanças, entregas, o que aparecesse. Um belo dia o velho Ribeiro, pai do Clóvis e português da antiga, viúvo que não trocava o sítio no meio do mato pela cidade por nada neste mundo, bateu a caçuleta sem mais delongas, deixando para o filho único umas terrinhas bem cuidadas lá pelos lados de Itu, na época uma lonjura.

Um mês depois do velho Ribeiro ter ido desta para melhor (quem garante?) o Clóvis encheu-se de coragem e foi até o sítio dar uma geral. Encontrou o mato já crescido invadindo o caminho de pedras, teias de aranhas no alpendre e uma cobra cujo nome nunca quis saber enrolada sobre o capacho da entrada. Sentiu remorso pelo abandono daquilo que era tratado com tanto carinho pelo pai e decidiu: eu vendo ou eu cuido!

- Moço, tamo aceitano o que tivé. Mormentemente um pratinho de comida pros menino. Sem saber bem por que, Clóvis lembrou naquela hora do pai, que também passara maus bocados ao imigrar, e pediu que esperassem. Falou com a mulher que juntasse as roupas em desuso, e servisse qualquer coisa praquela família comer, comida pros meninos.

Encurto a história. Merê (Maria Emerenciana) e Jesuíno, mais os meninos, acabaram contratados como caseiros do sítio em Itu. Muitos fins-de-semana nos reunimos lá para o churrasco à beira da piscina, tudo muito bem cuidado, e num deles ouvi o pedido inusitado:

- Mãínha, faz doce de gengiba, faz?

Minha curiosidade foi satisfeita horas mais tarde, quando foi-me oferecida uma canjica morninha, recém-feita. Estava gostosa, com pedaços de canela em pau e cravo da índia, os grãos “al dente” ofereciam alguma resistência ao mastigo, o caldo adocicado. “Seu” Jesuíno, que era desdentado e sorria com sua banguela lustrosa, afastado alguns metros, na sua posição predileta, de cócoras, tomava a canjica, e ao amassar os grãos durinhos com aquela boca acolchoada, dizia para si mesmo, baixinho: - Ai! Que cósca nas gengiba!

Dona Merê ficava avexada, e dizia num resmungo: - Ô Jesuis, vai ponhá as chapa, hômi!

Vim-me embora com a imagem daquela família feliz, para quem Freud seria no máximo uma palavra quase feia.

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