Tema 009 - CÓDIGO
BIOGRAFIA
ALPHA-BETA
Luís Valise

Outra vez a velha aflição, o conhecido desespero defronte o monitor branco e arreganhado à espera da inseminação redentora, algumas letras peloamordedeus! Antes que o Editor-chefe me olhe de novo e seja atraído pelo vácuo que preenche meu crânio. Pra piorar, o cursor pisca sarcástico: foda-se! foda-se!

Deve ser de propósito, só pode ser de propósito, o coisa-ruim sabe que eu não sei escrever amarradinho, com tema pré-determinado, as paredes estreitas do chiqueirinho. Eu gosto mesmo é quando ele diz sei lá, faça o que você quiser! Aí então eu recebo um Kubrick de frente, a amplidão do espaço, o osso voando, as estrelas. Mesmo que saia Uma Idiotice no Espaço, é assim que eu gosto. Mas já foi pior. Durante um tempo tentei redigir para propaganda e isso durou três dias.

Na primeira campanha, de alimentos para cães, eu "não comprei" o produto. Ninguém conseguia me convencer que aquele cascalho insosso poderia deixar um cachorro feliz. Será que nunca tinham visto um cão com um osso de bisteca na boca? Desistiram e me deram outro trabalho, crentes que com este eu concordaria: absorventes higiênicos. Eu tinha que escrever que ela se sentiria mais segura e ele nem perceberia que ela estava "naqueles dias". Mas eu não concordei, e dizia que durante o período ela deveria mostrar-se mais frágil e delicada, e com isso despertaria nele muito mais ternura e carinho. Desistiram e me mandaram embora. E como se isso tivesse sido anunciado, desde então sou tratado com desdém tanto pelos cachorros quanto pelas mulheres.

Mas existem macetes para afastar o vácuo. Basta você pensar em escrever suas Memórias. Quando você começar a pesquisar fatos relevantes para o livro verá que é muito mais fácil falar sobre os recursos afrodisíacos da alcachofra. Já pensou nisso? Ir tirando folha a folha, até alcançar o cerne cálido e macio e....voltando ao Editor-chefe: ele está me olhando. Deixe-me continuar fingindo que escrevo sobre o tema proposto, quando eu menos esperar me vem uma idéia, dane-se o chiqueirinho. Diz a lenda que o Canhoteiro driblava em cima do espaço de um lenço, então por que eu não conseguiria escrever sobre o Unicórnio?

Sete e meia da noite. Às nove o coisa-ruim passa pra pegar o artigo e até agora nada. A tela branca ainda está na minha frente, cheia de letrinhas. Não dou tempo para o cursor dizer aquilo. A cada três meses o computador pede para que seja trocada a senha de acesso. Inútil. Eu queria mesmo é que ao menos uma vez ele me ensinasse o código de acesso à minha alma.

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