Clara releu a última frase
de seu romance, fechou as folhas numa pasta e alisou, pensativa, a capa
azul-brilhante. Estava descontente com o que escrevera. Fez uma autocrítica
e resolveu procurar o Mestre em Literatura.
A casa não era antiga, mas velha, e sua marca de orgulho - um frontão
arrematado por cornijas - evitava que fosse um simples chalé. O terraço
lateral tinha cadeiras e um divã confortável de vime; foi ali que uma
senhora de rugas tranqüilas a mandou esperar.
Clara repensou as palavras que diria ao Mestre. Depois, segurando o guarda-corpo
do terraço, cansou de olhar as margaridas, os limoeiros, as touceiras
de capim elefante. O jardim longo e estreito, separando a casa do muro
alto da rua, era um matagal áspero, habitado por lagartixas e borboletas.
Ela respirou fundo um cheiro de fogueira que vinha de outros quintais
e sentiu uma grande melancolia. Tomava-a uma modorra quando a senhora
apareceu para despachá-la.
"Ele não pode atender
hoje."
Limpava as mãos numa estopa.
"Disse que volte amanhã, querendo."
Clara ia se aborrecer, mas lembrou que aquela era uma expressão arcaica,
não uma grosseria.
Na segunda visita, tudo se
passou de modo semelhante. Ela acolheu o desafio e veio-lhe a vontade
de persistir; chegou mais cedo na terceira visita.
O Mestre, um homem sem idade, esperava sentado numa das cadeiras de vime
e indicou-lhe outra, sem grande solicitude. Nada explicou sobre os dias
anteriores, olhando-a com ar inexpressivo e em silêncio. Sem atinar com
as palavras, Clara batia com os dedos na pasta azul, mas enfim dominou-se,
e logo ouvia a própria voz animada e fluente. Entregou a pasta, com um
gesto vagaroso e ritual.
O Mestre principiou aconselhando que mudasse o título. Já havia igual,
era um livro imaginário de um escritor personagem de Nabokov.
"Chama-se Albinos de Preto. Sei, sei, o título de seu romance é O
Lírio e a Madrugada. É igual a Albinos de Preto, quase um plágio."
Clara reservou para mais tarde a compreensão daquela identidade de títulos,
e repetiu o que a preocupava. Queria encontrar uma expressão direta, mas
sem obviedade. Praticar a narrativa precisa, percuciente e punctiforme,
mas não uma linguagem ensaística - pois que essa não alcançava o cerne
de sua invenção.
O Mestre olhou muito tempo a parede branca e respondeu que procurasse
misturar a pedra e a angústia. Mandou que alisasse com a mão a superfície
caiada. Clara tateou sobre o reboco áspero, frio e seco, marcado com finos
traços invisíveis deixados por um pincel antigo. O Mestre disse que fechasse
os olhos e o imaginasse, a ele, em frente à parede.
"Eu estou aí, de pé, tão junto que meu nariz se comprime, meus olhos
se embaraçam, meus lábios tocam a brancura da cal. Por um processo mágico
vou penetrando na parede. Que sinto eu? Descreva o cheiro mordente da
tinta, o ardor de sua composição ácida, o sabor acre de sua química. Já
quase todo meu rosto está no interior; conte como provo o gosto do emboço
com sua dosagem de saibro e cimento, como transito entre a porosidade
da massa e a dureza sonora dos tijolos. Entro mais. Estou aprisionado.
Descreva a sufocação que me aperta os pulmões, e o desespero que me acomete
ao descobrir que a estrutura se alarga para todos os lados, infinita,
e eu fui emparedado para sempre."
Ao abrir os olhos, Clara viu borboletas refletindo o sol forte e percebeu
que mais de uma hora se passara. Um galo extemporâneo cantou.
"Eu quero tudo isso, mas numa linguagem nova, única, brotada de mim
mesma, urdida no âmago de minha criatura. O que alguns chamam de original
- mas não preciosística, pois que essa é falsa como uma moeda folheada."
O Mestre percorreu seu corpo com o olhar, e disse que procurasse combinar
o orgasmo e a filigrana.
"Somente Clara é a expressão única e inimitável. Escreva como se
autenticasse a recolha no fundo de seu abismo. Experimente. Viaje o corpo
nu com as mãos e procure descrever sua mais funda carícia. Suba os montes
através de espirais intermináveis, até rodear os pináculos rosados, como
os dois cordeiros que pascem na linguagem dos Cantares. Desça devagar
a escarpa do ventre. Durante muito tempo explore a penugem, redescubra
a curvatura do triângulo intumescido. Quando a excitação afogar seu corpo,
abra lentamente entre os dedos a corola macia. A vagem túmida estará pulsando.
Afague-a no ritmo e na pressão que ela pede. Deslize sobre a seiva que
escorre, com um dedo, ou dois, ou o inteiro círculo de sua palma. Descreva
então o que sentiu. Eu quero ler essa narrativa. Será incomparável."
"Textos sobre sonhos e desejos são peças que já nascem prontas"
- disse Clara, com a voz velada e gutural. - "Já sei como expressar
a angústia alheia. Já aprendi a narrar minha própria agonia. Eu quero
agora construir o mundo para mim e o outro."
"É preciso então dissolver juntos o granito e o âmbar" - falou
o Mestre. Levantou e tomou-lhe a mão. Levou-a até o divã e sentaram juntos.
Acariciou seus cabelos. Beijou seus olhos. Cigarras ciciavam longe e o
sol queimava as pétalas das margaridas. Clara sentiu que o Mestre desfazia
seu vestido com a mesma leveza das borboletas voando sobre o matagal ensolarado.
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