Tema 009 - CÓDIGO
BIOGRAFIA
O MESTRE EM LITERATURA
Fernando Borba

Clara releu a última frase de seu romance, fechou as folhas numa pasta e alisou, pensativa, a capa azul-brilhante. Estava descontente com o que escrevera. Fez uma autocrítica e resolveu procurar o Mestre em Literatura.

A casa não era antiga, mas velha, e sua marca de orgulho - um frontão arrematado por cornijas - evitava que fosse um simples chalé. O terraço lateral tinha cadeiras e um divã confortável de vime; foi ali que uma senhora de rugas tranqüilas a mandou esperar.

Clara repensou as palavras que diria ao Mestre. Depois, segurando o guarda-corpo do terraço, cansou de olhar as margaridas, os limoeiros, as touceiras de capim elefante. O jardim longo e estreito, separando a casa do muro alto da rua, era um matagal áspero, habitado por lagartixas e borboletas. Ela respirou fundo um cheiro de fogueira que vinha de outros quintais e sentiu uma grande melancolia. Tomava-a uma modorra quando a senhora apareceu para despachá-la.

"Ele não pode atender hoje."

Limpava as mãos numa estopa.

"Disse que volte amanhã, querendo."

Clara ia se aborrecer, mas lembrou que aquela era uma expressão arcaica, não uma grosseria.

Na segunda visita, tudo se passou de modo semelhante. Ela acolheu o desafio e veio-lhe a vontade de persistir; chegou mais cedo na terceira visita.

O Mestre, um homem sem idade, esperava sentado numa das cadeiras de vime e indicou-lhe outra, sem grande solicitude. Nada explicou sobre os dias anteriores, olhando-a com ar inexpressivo e em silêncio. Sem atinar com as palavras, Clara batia com os dedos na pasta azul, mas enfim dominou-se, e logo ouvia a própria voz animada e fluente. Entregou a pasta, com um gesto vagaroso e ritual.

O Mestre principiou aconselhando que mudasse o título. Já havia igual, era um livro imaginário de um escritor personagem de Nabokov.

"Chama-se Albinos de Preto. Sei, sei, o título de seu romance é O Lírio e a Madrugada. É igual a Albinos de Preto, quase um plágio."

Clara reservou para mais tarde a compreensão daquela identidade de títulos, e repetiu o que a preocupava. Queria encontrar uma expressão direta, mas sem obviedade. Praticar a narrativa precisa, percuciente e punctiforme, mas não uma linguagem ensaística - pois que essa não alcançava o cerne de sua invenção.

O Mestre olhou muito tempo a parede branca e respondeu que procurasse misturar a pedra e a angústia. Mandou que alisasse com a mão a superfície caiada. Clara tateou sobre o reboco áspero, frio e seco, marcado com finos traços invisíveis deixados por um pincel antigo. O Mestre disse que fechasse os olhos e o imaginasse, a ele, em frente à parede.

"Eu estou aí, de pé, tão junto que meu nariz se comprime, meus olhos se embaraçam, meus lábios tocam a brancura da cal. Por um processo mágico vou penetrando na parede. Que sinto eu? Descreva o cheiro mordente da tinta, o ardor de sua composição ácida, o sabor acre de sua química. Já quase todo meu rosto está no interior; conte como provo o gosto do emboço com sua dosagem de saibro e cimento, como transito entre a porosidade da massa e a dureza sonora dos tijolos. Entro mais. Estou aprisionado. Descreva a sufocação que me aperta os pulmões, e o desespero que me acomete ao descobrir que a estrutura se alarga para todos os lados, infinita, e eu fui emparedado para sempre."

Ao abrir os olhos, Clara viu borboletas refletindo o sol forte e percebeu que mais de uma hora se passara. Um galo extemporâneo cantou.

"Eu quero tudo isso, mas numa linguagem nova, única, brotada de mim mesma, urdida no âmago de minha criatura. O que alguns chamam de original - mas não preciosística, pois que essa é falsa como uma moeda folheada."

O Mestre percorreu seu corpo com o olhar, e disse que procurasse combinar o orgasmo e a filigrana.

"Somente Clara é a expressão única e inimitável. Escreva como se autenticasse a recolha no fundo de seu abismo. Experimente. Viaje o corpo nu com as mãos e procure descrever sua mais funda carícia. Suba os montes através de espirais intermináveis, até rodear os pináculos rosados, como os dois cordeiros que pascem na linguagem dos Cantares. Desça devagar a escarpa do ventre. Durante muito tempo explore a penugem, redescubra a curvatura do triângulo intumescido. Quando a excitação afogar seu corpo, abra lentamente entre os dedos a corola macia. A vagem túmida estará pulsando. Afague-a no ritmo e na pressão que ela pede. Deslize sobre a seiva que escorre, com um dedo, ou dois, ou o inteiro círculo de sua palma. Descreva então o que sentiu. Eu quero ler essa narrativa. Será incomparável."

"Textos sobre sonhos e desejos são peças que já nascem prontas" - disse Clara, com a voz velada e gutural. - "Já sei como expressar a angústia alheia. Já aprendi a narrar minha própria agonia. Eu quero agora construir o mundo para mim e o outro."

"É preciso então dissolver juntos o granito e o âmbar" - falou o Mestre. Levantou e tomou-lhe a mão. Levou-a até o divã e sentaram juntos. Acariciou seus cabelos. Beijou seus olhos. Cigarras ciciavam longe e o sol queimava as pétalas das margaridas. Clara sentiu que o Mestre desfazia seu vestido com a mesma leveza das borboletas voando sobre o matagal ensolarado.

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