Dentro do carro a paz era completa: sozinho, vidros fechados, Gal encantando no CD (se acaso me quiseres, sou dessas mulheres que só dizem sim...), a estrada serpenteando macia na manhã de sábado, ninguém pedindo pra correr menos. Aqui e ali uma nuvenzinha branca lembrando que existem mais coisas entre o céu e a terra. Tão bom que diminuo a velocidade pra espichar o tempo de prazer, como quando subitamente eu saía de dentro dela pra retardar o gozo e via sua cara de aflição, gotículas de suor sob o lábio inferior, os olhos se fechando quando eu voltava à carga e a boca aberta querendo sugar minha aura quando eu me derretia em magma...

Sacudo a cabeça para voltar desse devaneio, me percebo em meia-ereção, mas acabou, finito, já era. BLOMP! Um som cavo como um tijolo caindo no barro, uma puxada violenta do volante para a esquerda, o coração num corcoveio, o reflexo, o controle, o pneu. Às vezes, no meio do prazer que flutua entre o céu e a terra, aparece um pneu furado. Saio do ar-condicionado deixando Gal falando sozinha, abro o porta-malas e faço o lógico: solto um puta palavrão!

Chego na cidadezinha, logo na entrada um posto com borracheiro. Relaxo. Acendo um cigarro e espero pelo conserto assuntando os arredores. Entro na oficina pra fugir do sol quente e então a vejo num calendário da Pirelli: que avião! Com aquele jeito de quem não quer mostrar nada e já mostrando tudo que se pode mostrar sem que a mulher do borracheiro rasgue a folhinha. A vizinha. Ela mesma, do décimo andar, no elevador a cara de sonsa. O fim-de-semana terminou no começo, eu quero voltar pra casa, chega logo, segunda!

Boa-noite, dona Vera. - Boa-noite, mas não é dona nem Vera, é Carolina. Carol. Sorriu e desceu no décimo andar.

Algum tempo depois eu já sabia que não era Carolina, mas Maria de Fátima. Nem era só Pirelli, mas Good-Year, Firestone e Freios Varga. Não era só um retrato na parede. E não doía.