Tema 006 - CALENDÁRIO
BIOGRAFIA
CALENDÁRIO
Flávia Cintra

Eu queria que os calendários nunca tivessem sido inventados. Dói ver o tempo passar através deles.

Desde criança essa angústia de saber que o tempo passa (e não pára, Cazuza!) me acompanha. Todo mundo queria ter logo 18 anos pra entrar em filmes proibidos pra menores e aprender a dirigir, crescer até alcançar a última prateleira do armário e achar as guloseimas escondidas, chegar aos 21 e não precisar mais de autorização dos pais pra casar. Os sonhos eram esses. Não os meus.

Se eu pudesse ter parado no tempo e ficado com meus 10 anos, estaria feliz para sempre. Ê, saudade! De não ter responsabilidades a não ser passar de ano e manter o quarto arrumado. De brincar de boneca e andar na garupa da bicicleta do meu irmão. De ir ao clube todo santo dia e ver as novelas das seis, das sete e das oito. De comer misto quente, beber chocolate frio e tomar sorvete italiano no colégio. De sonhar poder tomar um litro de coca-cola sozinha. De ser a filha. E de não ter esta alma há muito enrugada.

Um dia, já com 14 e sem ter conseguido segurar o danado do tempo, li uma poesia que dizia que cada ano de vida nunca é mais, é sempre menos. E eu, que já tinha pesadelos com o fim do mundo, buracos negros e Nostradamus, passei um mês inteirinho em pânico, dormindo pouco e chorando muito. Eu me imaginava voando sozinha pelo espaço, sem um chão firme pra pisar, sem ninguém pra conversar e sorrir pra mim, pra me confortar depois da morte. E chorava, e chorava. Por isso queria que o tempo parasse. Ninguém nunca soube disso.

Se eu tivesse ficado nos meus 10 anos, não teria chegado naquele estágio triste da vida onde a gente percebe que um dia vai morrer. E se não existissem calendários, não teríamos como medir o tempo que nos separa da morte.

Os calendários foram se sucedendo, foram sendo riscados, arrancados, inutilizados e, neste belo dia de verão, hoje, estou aqui, do alto (baixo) dos meus 28 anos me perguntando quantos mais eu vou ver passar dolorosamente, sem que eu possa fazer nada. E não são 28 anos a mais, mas a menos.

Vivi, minha irmã do meio, um dia sentenciou: “Flavinha, pelo menos o tempo passa pra todo mundo. Vamos todos morrer um dia.”

Vivi, isso não serviu de consolo pra mim. Eu menti pra você.

Vivi, eu não quero morrer.

Malditos calendários. Malditos egípcios, Eudóxio de Cnido, Júlio César, Papa Gregório XIII. Deixassem que tivéssemos a ilusão da vida eterna. Deixassem o tempo simplesmente passar.

Protegido de acordo com a Lei dos Direitos Autorais - Não reproduza o texto acima sem a expressa autorização do autor