Tema 004 - O PÚCARO BÚLGARO
BIOGRAFIA
ÚLTIMA PENTEADEIRA
Maurício Cintrão

Hoje é minha despedida. Serei aposentado junto com a penteadeira. Depois de muitos anos de uso, ficarei guardado em alguma caixa velha para mofar com roupas fora de uso e cortinas rasgadas. Caímos de moda, nós e os bordéis domésticos. Agora, tudo é mais profissional. Camas redondas, espelhos no teto, suítes bem decoradas e sem pertences pessoais à vista.

Esta penteadeira é última da casa. Ficou para o fim porque começaram a reforma lá por baixo. Logo vou embora. Ela também vai. O dono da loja de móveis usados não confia muito que possa revendê-la. Mas leva por uma gentileza ao Dr. Souza, que comprou o ponto e está modernizando o negócio. Sabe como é, né? É sempre bom manter boas relações com um delegado.

Vou perder um posto privilegiado. Já vi muita coisa louca nesses anos todos de penteadeira. Vi clientes baterem nas moças. Vi moças baterem nos clientes. Vi meninas-moças deixarem de ser meninas. Vi moças partirem, poucas moças... Eu vi a vida ao lado do espelho.

Sempre pensei que alguma briga acabaria comigo, já que sou feito de louça vulgar e nenhum larápio mostraria interesse por mim. A Elsa bem que ameaçou me levar embora, de recordação. Mas depois que descobriram que ela já estava levando outros pertences das moças da casa, foi expulsa aos bofetões e eu voltei para cá.

Levei alguns tombos, é verdade. Tenho estas marcas de um deles. A Bezinha estava bêbada e fez aquele escândalo todo por causa da paixão frustrada pelo fazendeiro. Me jogou no chão. Quiquei, quiquei, quiquei e não quebrei. Outra vez, um cliente irado me pegou  e ameaçou bater comigo na cabeça da Dorinha, mas Dona Mariquinha chegou na hora e deu um esculacho no idiota que nunca mais voltou e me largou de volta ao lugar de origem.

Quis o destino que eu resistisse e chegasse até aqui. Mas que sorte é essa? Terminar meus dias entre xixi de rato, baratas e poeira? Preferiria ter tido o mesmo fim do púcaro búlgaro de pó-de-arroz. Ele teve mais sorte. Tantas mãos o tocaram com carinho! Tantos olhos o cobiçaram! Tantas mulheres esconderam a velhice ou a tristeza com sua ajuda. A quantos tombos e brigas ele não sobreviveu?

Ninguém sabe ao certo como foi, mas ele acabou sendo roubado daqui e levado para o mercado de velharias, lá na cidade. Dizem que foi vendido por uma mixaria. Tomara que algum colecionador tenha identificado sua origem e arrematado rapidamente, antes que virasse porta-qualquer-coisa em cima de alguma geladeira.

Ele tinha muito valor. Foi dado pelo Conde à Dona Mariquinha quando ainda era jovem e bonita. Foi presente fino, dado com paixão. Aliás, nem imagino porque veio parar nesta penteadeira. Talvez tenha sido por decepção dela. O Conde desapareceu de uma hora para outra e nunca mais voltou.

Bom, a conversa está boa, mas chegou a minha hora. Já vão me levar embora. Saibam que foi um grande prazer ter falado com vocês. Caso encontrem por aí um belo púcaro búlgaro, mandem meus cumprimentos a ele. Digam que foi o velho amigo, o bibelô da penteadeira, quem mandou. Ele vai saber quem foi.

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