OFERTA
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Beto
Muniz
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Oferecer é apresentar ou propor algo que você quer que seja aceito. Ou pelo menos espera que a pessoa aceite. Agora experimente explicar isso para uma criança de seis anos com uma guloseima na mão, diante de outra criança. Nas minhas lembranças da infância eu não queria dar nenhum pedaço do meu doce, sorvete ou qualquer outra coisa que fosse minha. O que era meu era só meu! Já o que era dos outros eu esticava os olhos e cobiçava sempre. Essa foi a melhor idade. A idade perdida do egocentrismo, em que tudo girava ao redor do meu umbigo. Como eu não queria compartilhar com o resto do mundo um tiquinho sequer do que era meu, levei muita reprimenda da minha mãe por oferecer de forma incorreta. Sem esquecer que se fosse obrigado a oferecer algo, a minha mão ficava mais próxima do corpo, tanto quanto era possível. A mão mostrava de longe, tentando camuflar, enquanto a boca soltava o fatídico: - Não quer um pedaço? - Não... O "NÃO" na frase de oferecimento predispunha minha recusa em partilhar a guloseima de cada dia. Mas o outro 'não', o da resposta, demonstrava dignidade, apesar de sair murcha, quase gemida, ao mesmo tempo em que os olhos do atrevido buscavam identificar o produto oferecido. Eu não era tolo de ofertar um pé-de-moleque bem na cara do oponente. Vai que os olhos não escutassem o "NÃO" da minha frase? Por isso a mão ficava colada ao corpo. E lá vinha a bronca da mãe sempre atenta a educação do filho. - Ofereça direito! - Aceita um pedaço? - Não, obrigado... Às vezes a bronca vinha acompanhada de um puxão de orelhas, mas eu tinha ganhado a batalha, definida no primeiro round, e conservava a posse integral da guloseima. Desde criança eu já era um grande estudioso das reações humanas, sabia como funcionava o sentimento de dignidade dos meus rivais. Se haviam recusado na primeira vez, não aceitariam na segunda tentativa. Orgulho infantil. Sem contar que a segunda resposta, agora que a atenção de um adulto estava voltada para o diálogo, era até mais educada e a recusa vinha fazendo par com um 'obrigado', mesmo que os olhos continuassem espichados numa última tentativa de enxergar o objeto oferecido. Pelo que me consta na memória, camuflar o doce no meio das mãos nunca foi falta de educação. O cenário passou a ser diferente quando fui para a escola, às coisas funcionaram, no início, como uma inversão de valores contra mim. As regras eram contrárias ao meu jogo. Eu esticava os olhos em direção as guloseimas alheias mais do que esticavam para minhas pobres bolachas sem recheio. Rapidamente re-avaliei minhas estratégias e então adotei novas regras que permitiram perfeita integração nesse novo mercado. Era um jogo de troca onde eu devia partilhar o meu lanche se quisesse experimentar o lanche do colega de classe. Fui aprendendo que o egoísmo era inimigo da diversidade, e na minha imaginação fertilizada pelo demônio da gula, um pedacinho de cada coisa era mais gostoso que um pedação de uma coisona só. A partir desse dia meu oferecimento mudou: - Vamos barganhar? - O que você trouxe hoje? - Mostra você primeiro... Quando compensava, eu conseguia garantias de que o trato não seria desfeito e só então mostrava meu pão com manteiga, que seria, metade, trocada por um pedaço do bolo de fubá. Um dia me engalfinhei pelo chão com um tratante que não quis cumprir com a parte dele no trato. Ele havia levado bolo de aniversário, com recheio gelado e glacê, eu estava com um pedaço de pão doce, simplão. Terminado o embate estávamos, os dois, sujos e ralados. Ele mais ralado que eu. Comi todo o bolo e saí vitorioso. Por pouco tempo. A demora no consumo e o calor estragou o recheio do bolo. Passei a tarde brincando de flor no vaso sanitário da escola. Hoje esses episódios são uma lembrança alegre. Como podia ser tão bobo e brigar por coisas tão pequenas? Não encontro respostas. Assim como não encontro respostas que justifiquem a recusa em ceder alguns dos trinta livros de crônicas, iguais, que me foram ofertados pelo patrocinador. Alguém vai ficar sem livro! A menos que tenha a cara de pau de dizer sim, quando ouvir eu perguntando: - Não quer um livro? Ou então, posso retomar a tática aprendida na escola: - Vamos barganhar? - Tenho isso e aquilo, o que você vai querer? - Nem isso, nem aquilo. Quero você... E antes que ela se refaça da surpresa, eu a agarro e tasco um beijo! De língua!
(Acabei recebendo sessenta exemplares do livro AS CRÔNICAS DOS ANJOS DE PRATA e doei quinze... Não beijei ninguém!) |
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