Tema 002 - ALICATE
BIOGRAFIA
O DENTISTA
Marcel Agarie

Sexta-feira de muito calor em São Paulo. Eu, junto com a minha namorada, estavámos nos programando para viajar para a praia e aproveitar o caloroso final de semana que vinha por ai. Isso até uma ligação de minha mãe, em meu serviço, informando que minha dentista iria me atender no sábado, as 11 da manhã.

Será que alguém trocaria o sol, água de coco, mar e a brisa marítima por dentista ? Motorzinho ? Sugador ? Canal..??

Para quem está lendo isso, com certeza já pensou. Porque não cancelar o dentista e ir "farofar" serra abaixo? Infelizmente era uma ocasião meio delicada. Minha dentista não tem horários que possam me atender durante a semana e era uma raridade conseguir um tempo exclusivo no final de semana. Não pude recusar, e além do mais, era uma cirurgia que eu precisava fazer: a extração do dente do siso. Dente que me incomodava há meses, e do jeito que cultivo a Lei de Murphy, talvez se eu fosse para a praia sem passar pelo dentista, tenho certeza que o dente me daria problemas na hora de comer um milho verde na areia.

Foi quando começou toda a mudança da programação do meu final de semana. Precisei falar com minha namorada e alterar o horário de viajarmos para depois do dentista, que por sinal não foi muito do gosto dela, mas que acabou entendendo a situação e aceitando.

Na noite de sexta para sábado, não consegui dormir direito com uma tosse que resolveu me atacar, e quando consegui pegar no sono, já era hora de ir para a cadeira elétrica, ou melhor, para a cadeira do dentista. Não sou de sentir medo para ir ao dentista, mas confesso que fiquei apreensivo, porque eu imaginava que a cirurgia iria comprometer a minha viagem, porém segui tranquilo, acreditando estar fazendo a coisa certa.

Toquei a campainha pontualmente as 11 horas. A dentista me atendeu e pediu que me ajeitasse na cadeira, enquanto ela iria preparando os equipamentos. Neste instante eu estava calmissímo, pois já havia feito uma vez a extração do siso, e a cirurgia não passara de 15 minutos, me deixando mais otimista para ir embora e descer logo rumo à praia.

Como o consultório é na própria casa de minha dentista, o ambiente era totalmente caseiro, havia um incenso perfumando o local, algumas músicas tocando de fundo em um rádio velho e um cachorro, ou melhor, três cachorros latindo sem parar, parecia até um canil, mas nada abalava minha tranquilidade de monge.

Após preparado todos os equipamentos, ela examinou minha boca e logo de cara encontrou uma obturação que havia caído. Pensei comigo: deixa pra lá, e vamos logo para a cirurgia que quero ir para praia. Como ela não lê meus pensamentos, acabou fazendo a obturação, que me atrasou no mínimo uns 30 minutos. Tentei ser otimista e acreditei que essa obturação caída, poderia ter me trazido problemas na praia e ela me salvou de ficar com "aquela" dor de dente em pleno final de semana.

Terminado a obturação, ela iniciou os preparativos para a cirurgia. Luvas, anestesias, alicates, bisturi, e mais um monte de ferramentas que só de olhar, me deixou pensativo. Pra que tanta coisa em uma cirurgia de 15 minutos ? Isso era o que eu pensava.

Primeira parte. Anestesia. Dá-lhe anestesia !!. Anestesia na esquerda, anestesia em cima, anestesia em baixo. Fiquei com a boca parecendo um formigueiro, sem sentir nada. Poderia tomar uma porrada do Mike Tyson sem doer, e acho que seria até mais rápido, porém além do siso ele me arrancaria mais uns 15 dentes.

Inicia-se a cirurgia tocando forró no rádio e os cachorros latindo de fundo. Falem a verdade. Melhor combinação que essa, só se tocar Nelson Ned com hipopótomos sapateando. Tudo bem. Tentei manter meu pensamento otimista, e pensei que tudo isso só duraria apenas 15 minutos, e depois era até domingo a noite de praia, praia e praia.

Quando mal percebi, ela já havia cortado minha boca, pois já se via sangue quando eu cuspia na pia, pensei então, mais uns dez minutinhos e estarei saindo dessa cadeira grudenta de tanto suor. Enquanto isso ela continuava mexendo, virava, levantava minha cadeira, e nada de sair o tal dente. Teve uma hora que minha terapia, era ficar olhando um mosquitinho, daqueles que ficam em cima de bananas, voando sob a luz da cadeira. Eu ficava imaginando o mosquitinho rindo de mim, vendo o meu sofrimento. Por alguns instantes me deu até raiva. Imagine eu com todo esse tamanhão perto do mosquitinho, e totalmente inofensivo com aquela parafernalha toda na minha boca. Depois de tanto rir, o mosquitinho foi embora, e me deixou lá sofrendo com os cachorros latindo e o locutor da Antena 1 Fm dizendo que estava trinta graus no litoral paulista. Tudo bem, o relógio já contava 30 minutos de cirurgia e nada do siso sair. Meu otimismo não era mais o mesmo e minha tranquilidade encontrava-se abalada, graças ao mosquitinho.

Para me deixar mais apreensivo, o siso não queria sair de jeito nenhum, e foi preciso pegar o tal do "motorzinho", que só de ouvir aquele barulhinho chato, deixa todo mundo arrepiado. Fiquei mais uns 5 minutos com motorzinho na boca desgastando o último dente antes do siso, para que o dito cujo conseguisse sair com mais facilidade. Ohh dente difícil!! E eu pensando que naquele instante poderia estar rumo à Anchieta-Imigrantes.

Depois de muito "motorzinho", cutuca daqui, torce com alicate dali, sai o tal do siso. Era enorme !! Nem acreditei que tudo aquilo tinha saído pela minha boca. Eu parecia uma mãe tendo o seu primeiro filho quando vi o dente. Não sabia se chorava de alegria ou se pegava aquele dente do siso gigante e jogava no rádio ou nos cachorros, que continuavam me atormentando.

A verdade era que a cirurgia estava em seu fim, faltavam poucos minutos para eu me livrar daquele rádio chato e dos cachorros barulhentos, e quem sabe um encontro casual com o mosquitinho para uma leve vingança, pois agora eu estava livre daquela prisão odontológica.

Desabafos à parte, era só tomar os pontos, fazer o curativo, ouvir as recomendações do dentista para seguir rumo a praia, porém enquanto a dentista passava as recomendações, a praia ia ficando cada vez mais longe, pois eu precisava ficar o dia inteiro de cama, tomar alguns antibióticos, não fazer força e principalmente não tomar sol para não ter uma eventual hemorragia.

Graças ao siso, tive que informar minha namorada que a viagem à praia deveria ser cancelada e neste mesmo instante, não sei o porque, lembrei-me de novo do mosquitinho rindo de mim. Que nervoso !! Voltei para casa um pouco frustrado, pois a cirurgia que imaginava durar 15 minutos, durou mais de 1 hora e a viagem que havia programado, estava cancelada.

Mas como toda história tem o seu final feliz, ao final da consulta minha dentista, muito bem intencionada, me deu uma lembrança para que eu nunca esqueça este maravilhoso final de semana. O meu dente do siso.

Ai, se eu encontro aquele mosquitinho !!!

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