Tema 002 - ALICATE
BIOGRAFIA
ALICATLEC
Lena Chagas

Foi por quase uma década - e era a de 60 - e desde então guardo aquele som inconfundível, bem vivo na minha lembrança: tlec...tlec... Dois estampidos secos, de mesma intensidade e quase ao mesmo tempo, que se repetiam por inúmeras vezes, na minha infância.

Já era quase uma rotina acordar antes das 5 da manhã, pelo menos uma vez por mês, pra pegarmos o trem que nos levaria a Estação Portão, um município de São Sebastião do Caí, interior do RS, onde se concentra o maior número de parentes da minha avó materna, com quem morei, desde os 5 anos. Tomávamos um café reforçado e, ainda escuro, de maletinhas nas mãos, lá íamos nós duas, minha avó e eu, para a parada do trem, à beira dos trilhos, na parte baixa da vila onde morávamos, em São Leopoldo/RS. Nem se cogitava a hipótese de pegar dois ônibus pra fazer a tal viagem. O trem passava bem mais perto e era muito mais atraente, acolhedor e interessante. Não havia parada demarcada com sinalização. Era uma parada presumida, criada por um "acordo tácito" entre o maquinista, que já sabia onde parar e os passageiros, que sabiam onde ele pararia. Havendo gente esperando, ele parava; não havendo, passava devagar e seguia direto.

Mas naquele dia ele pararia. Éramos as únicas a congelar naquele frio cortante, mergulhadas na cerração que nos impedia de enxergar mais que um palmo à frente do nariz. Enquanto esperávamos, perguntava pra minha avó se o homem do alicatlec apareceria de novo. Ela insistia em me corrigir: "Fala direito, menina: a-li-ca-te!" Mas pra mim continuava sendo a-li-ca-tlec! E eis que, de repente, o apito do trem rasga aquela espessa nuvem gelada que nos envolvia e anuncia a sua chegada. Em seguida já se podia ouvir o roçar de ferro contra ferro, indicando que ele diminuía a velocidade. De súbito, surge um farol que clareia tudo e aumenta, à medida em que se aproxima de nós. Logo que pára, o vapor que escapa da descarga nos atropela, antes que possamos colocar os pés nos estribos e subir no vagão. Em segundos, enquanto procuramos um assento duplo pra sentarmos, ele retoma a velocidade e a viagem continua. Pra mim, ela está apenas começando! Era uma verdadeira aventura aquela viagem que não devia durar mais que 50 minutos.

Sempre que íamos a Portão, a ida e a vinda eram a melhor parte da viagem! O trem de ferro me fascinava. Do apito característico e único - que avisava a proximidade de cada estação ou uma passagem de nível - ao balanço ritmado que nos jogava de um lado para o outro; do barulho nos trilhos às fagulhas de brasa que entravam ou batiam nas janelas de vidro; do cheiro de lenha queimada ao homem do alicatlec. Tudo me fascinava, mas ele, além de tudo, me intrigava. Ainda havia aquela paradinha, em uma das estações, pra reabastecer o trem com água. Achava estranha a mangueira larga e mole, por onde a água passava! Antes mesmo de acabar, o trem saía andando e ela o ficava lambendo por alguns segundos, até cair, pendendo do poste que a prendia. Eu ficava na janela, olhando, até perdê-la de vista na próxima curva... e como havia curvas! 

Finalmente, lá pelas tantas - nem tantas assim - chega a hora que eu tanto esperava! Surge daquela porta que separa um vagão do outro, aquele homem sério, sempre muito sério, dentro de um uniforme cáqui, já desmaiado pelo tempo, com um quepe da mesma cor na cabeça, óculos de aro grosso e preto e um instrumento estranho na mão. Quase sempre eu tinha de cutucar a vó, que a essa altura tentava sonecar : "Vó! Lá vem o alicatlec, lá vem o alicatlec!" Sem balbuciar uma só sílaba, ele chegava em cada um dos passageiros : quem embarcou fora da estação pagava a passagem ali mesmo; quem já tinha o bilhete de passagem, o entregava pra ele. Todos em silêncio. - Outro "acordo tácito". - Raramente ouvia-se algum comentário. Aquela figura silenciosa e de cara amarrada impunha respeito. Em poucos segundos ele acomodava aquele alicate estranho na mão e, num movimento rápido : tlec, tlec..., perfurava o cartão e o devolvia, em seguida, ao seu dono. Meus olhos e minha curiosidade o seguiam por todo o vagão, até que todos os bilhetes estivessem furados. Quando havia muita gente eu chegava a seguí-lo por entre as pessoas, até que ele se perdesse pela porta adentro e sumisse na passagem para o outro vagão. Nunca entendi, naqueles tempos, por que tinha de haver um homem fardado, com quepe de guarda-noturno, óculos severos e cara tão sisuda, dentro do trem, só pra fazer um furo num cartão e, em seguida, devolvê-lo de novo. Queria saber, principalmente, o que e como era aquilo que ele trazia na mão, com o que ele conseguia fazer aquele furinho assim, tão redondinho e sempre do mesmo tamanho.

"Coisas de criança!" - dizia minha avó!- "Não faz tantas perguntas, menina! É um alicate, e pronto!" "Alicatlec!" - dizia eu - "Ele faz tlec... tlec...!". Consegui descobrir, depois de muitas viagens e na medida em que tomava coragem pra chegar bem perto e grudar o olho na mão dele, que o esquisito alicate tinha, numa de suas mandíbulas, uma ponta cilíndrica, lembrando uma carga de caneta BIC, só que de metal e muito afiada na extremidade. Porisso aquele estampido, quando perfurava o bilhete de passagem, que era um cartãozinho retangular, de papelão, com uns 2 milímetros de espessura: tlec...tlec e lá estava o furo! Vários furos por viagem e lá se ía o alicatlec!

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